Cinco poemas de Wilson Alves-Bezerra
Wilson Alves-Bezerra (S. Paulo, 1977) é autor dos livros de poemas Vertigens (Iluminuras, 2015 – prêmio Jabuti 2016 na categoria Poesia – escolha do leitor); O Pau do Brasil (Urutau, 2016-2020); Malangue Malanga (Multinacional Cartonera, 2019) e do disco virtual Catecismo Moreninho (Livraria Orgânica, 2020). Tem livros publicados no Chile (Cuentos de zoofilia, memoria y muerte. LOM, 2018), Portugal (Exílio aos olhos, exílio as línguas, Oca, 2017) e, logo, na Colômbia (Catecismo Salvaje. El Taller Blanco, no prelo).
Os poemas abaixo integram o livro Vertigens – trata-se de uma seleção de 5 poemas nos 5 anos de sua primeira publicação.
***
XIII.
A língua do Líbano avança no Mediterrâneo,
como se avista do céu. Os negros vão
colorindo os franceses e seus pães. O sangue
ainda não chega dos mares, mas bate-se a gente
no metrô. Meus pés não sabem das águas, nem
onde vai parar a Ilha da Madeira, alheia,
buscando ares frugais. O engano do sono não
cabe à branca tez de mulato descascado; a
consciência do corpo que sempre cai em
camadas não permite unidade. Agita-se a gente
nas terras, disposta a deitar sangue na erva. Mas
a morte não é consciente, só a agonia e delírio é
que o podem ser, porque tudo se dependura no
corpo. Estanque na terra uma fonte iluminada
de suor e de pus, sabe dos olhos entre toda
nuvem. Dizem que não há o frio, que a loucura
se cura e que não há o medo na morte. E
dizem: consolo. Quem aqueceu o cadáver,
quem fez a boca do louco fechar-se, quem
aquiesceu é coisa que não se diz. É quando as
línguas avançam e um rastro se perde impreciso
no que o olho só vê.
*
XIV.
O cheiro de hotel barato que emana da cabeça.
O gosto de travesseiro mofado quase na
garganta. Cada ponto de pó, em fila, no trilho de
um facho pela fresta, para cima ou para baixo. A
casa da infância grande como uma solitária e tão
luminosa quanto; os velhos se cobrem com terra
num jardim sem brinquedos. As irmãs, ansiosas,
carregam uma lancheira com vômito e frutas, e
trazem o desandador. Cada movimento será
novo sobre a terra; dizem para não pisar na
grama, para não quebrar os ossos dos antigos,
que em paz. Os lábios de Eleutéria pararam no
meio da ida, a boca ainda cheia, a frase ainda
pouca. Pode-se parar tudo para recomeçar mais
tarde. A janela aberta, meio bilhete, a galinha
morta toda penas. Só o desandador não permite
parar. Bendita a boca sem lábios de Eleutéria,
suspensa à beira da voz.
*
XV
O vento é circunspecto nos desertos daquela
terra; cada mulher se veste de resignação, e se
esconde debaixo da grande lata, enquanto
levanta poeira caatinga afora. Um calango sulca o
cascalho antes de ser espeto, e um índio passa
mourejando Brasil abaixo. Na casa de pau-a-
pique, Claudicleide põe farinha na água, inunda o
açude do prato e sonha com o pau de arara da
mãe. Levou a mão ao bolso e lembrou-se nos
braços da mãe, irmão no bucho e cordão de
prata. Voltou mais não, horizonte come quem
parte. Mãe dava beijo de esmola, o resto cobrava.
Outra como aquela não tem. Não sabe o que
ganhou no asfalto, levou as cores com ela;
chocalho e riso nos tacos. Claudicleide só pisa
pedra no casco, sem belezura e sem tinta no
beiço; um dia veio o pafúncio do Omaro,
ramalhete, mesuras e cigarro nos lábios. Tem pai
não, tem mãe não, tem para quem pedir não.
Claudicleide não amou Omaro, deu foi com a
lata nele, no coco. Agora nem promessa para São
Geraldo faz.
*
XXI.
Um olhar caeté se espicha da borda da mata
à boca do rio e me vê até onde não estou;
um mirante enterrado não mostra a ninguém
o espaço entre os grãos e o que ele tem em
vista. Quando a flecha passeia caudalosa, as
vozes velozes revoam nas grotas e fazem se
mover também os cipós. As águas que
correm cidade abaixo nas fossas não mudam
curso de rio. Cada gota inunda aos poucos.
Braços e coxas se exibem no coreto. Um
grito nas águas, o balançar dos coqueiros, um
massacre distante, nada detem a escaldante
placidez da cidade molhada. A siesta mata os
despertos que chacoalham moedas na rua;
um olhar caeté controla do alto da torre,
fincada no centro das coisas, o tempo
estancado por sombras. Não tem puteiro,
não tem livreiro, não tem perdão. Na igreja
do Bendito, emparedaram o síndico com o
regulamento nas partes. A cada crime
bárbaro equivale um olhar escondido na
vanguarda; a cada corpo que tomba é um
bicho qualquer o que se está imitando.
*
XXII.
Quando eu voltar, vou voltar para onde,
beber café na vila suja dos padres… lá não.
Tem mais rio no meu vale, não. Riacho de
bosta na canoa encalhou. Tem para onde
voltar mais não. Nesta terra só correnteza
abaixo e pedra. Quando pisava camarão no
mercado, sabia que depois era mosquito e
fumaça, e pisava só para crepitar o cheiro.
Tudo o que se cata na lama foi meu. Uma
constelação de urubus, o perdido é mais alto
que o borco do vasto. Uma mulher de dentes
domingos acena do improvável e pensa que
é um homem de lá que a tenta – fauno de
panificadora. O gesto se perde no largo das
coisas, coisa pouca pra quem já cavalgou
amazonas, mas distrai. Emborca para ver
sarará se mexendo descontente com a
repetição. Não distrai. Tudo passo de
alimentar o mangue. Tudo tristes maleitas e
penicilinas.
(Capa alternativa de Vertigens)
(Fotografia do autor por Fernanda Castelano Rodrigues)