Cinco poemas e um conto de Vinicius Medeiros
Vinicius Medeiros é diademense, bicha, sul-americano, filho de Sandra, de Helia, de Ruth, de Marlene.
É bacharel em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR (2018) e mestrando em Teatro pela UDESC. É membro e co-fundador do grupo TEATRO SECALHAR (PR), com o qual investiga, entre tantas coisas, formas de criação teatral em grupo e dramaturgia em processo.
Publicou a dramaturgia curta Fogo na 3ª edição da Maldita Revista de Dramaturgia (2021).
***
ontologia
(p/ H. H.)
não há nada
até que haja tudo
até que haja nada
*
TEOLOGIA III
(p/ O. F.)
I
Deus sabe que
não creio nele, que
sei que ele mente
sobretudo sobre
a própria existência.
II
Deus: máquina
de tortura
III
Não há Deus.
Ainda assim, há.
*
crossroads
(p/ G. A.)
você todo gente
língua pronta
palavra em punho
eu todo bárbaro
fala bamba
idioma rasgada
na avenida que
nos cruza yo te
cazo para abajo
*
me chame de
bicha
viado
boiola
baitola
biba
moça
fresco
maricas
maricona
xibungo
desencaminhado
desmunhecado
bichona
bichinha
goiaba
essa-coca-é-fanta
homo
esse-gosta-da-fruta
gay
delicado
gazela
amiga
afeminado
efeminado
rabo-solto
morde-fronha
caga-grosso
cu-largo
arrombado
mona
bee
frutinha
florzinha
boneca
princesinha
bambi
frango
entendido
invertido
transviado
desviado
extraviado
só não me chame de
você
*
rush
meio dia
corpo
largado
inerte
acidentado
asfaltado
não sabe
quando
como
onde
foi parar
não sabe
se corpo
ainda é
ainda será
faixa trancada
uma mão
a rua a multidão
os olhos
esgarçados
a gente
feito garça
escorada
nas pontas
dos dedos
das mãos
ombro baixo
cabeça pro alto
círculo torto
tudo homem
mas é bicho
tudo homem
porque bicho
junto ao corpo
moto inerte
duas rodas
caixa
entrega
dentro
comida
dentro
almoço
dentro
acorrentada
ao peito
a caixa
a faixa
cruzando a carne
punhal brasil
quem é que vai mover
o corpo do lugar
quem é que vai tirar
o corpo do lugar
quem é que vai levar
o corpo pr’um lugar
quem é que há de ser
o corpo no lugar
quem é que vai saber
esse tanto de resposta
meio dia
e sete
a sirene
acordando
os acordados
meio dia
(e sete)
a sirene
os bombeiros
o socorro
meio dia
(e sete)
a sirene
os bombeiros
o resgate
frente a tudo
a sirene
os bombeiros
o que fazem
os bombeiros
frente a tudo
meio dia
(e oito)
que mãos têm
os bombeiros
os bombeiros
baixo as luvas
de bombeiros
frente a tudo
que mãos têm
que demovem
o corpo
à móvel
caixa
quatro rodas
que mãos
(movido o corpo)
vão fechar
as portas pra partir
(os bombeiros)
quem é que vai ligar
(movido o corpo)
o carro e partir
(os bombeiros)
quem é que vai limpar
o sangue do lugar
(?)
quem é que vai trazer
o rodo
o veja
o mop
o vap
a água
quem é
(?)
quem é que vai fazer
o trabalho limpo
(?)
quem é
meio dia
e treze
as aves gritam
ninguém berra
nada é dito
meio dia
(e treze)
fim da multidão
(nenhum corpo)
a rua desestanca
os carros usam
duas faixas
*
Quarto
(p/ C. F. A.)
Todo mundo começa assim, ele me disse.
Uma mão na coxa, um sorriso vasto, contido, olho pregado na boca, a boca trêmula, desejante, como se pudesse falar algo tão sórdido quanto terno.
Todo mundo começa assim.
A língua dele ecoando em meu ouvido, um lado, depois o outro, o cheiro de homem gasto, o quarto impregnado de cheiro de homem gasto, os dedos de homem gasto, eu rendido, ainda resistente, mas rendido mesmo que resistente. Um sopro. O beijo primeiro seco, duro, logo flutuante, a boca, o lábio, o céu da boca, tudo encharcando, submergindo, a mão nem sei eu mais onde, eu mesmo nem sei eu onde, ali, o cheiro me trazendo de volta, o cheiro me levando pra longe. Ali.
Todo mundo começa assim.
Quando menos espero, justo por tanto ter esperado, ele inteiro dentro de mim. Inteiro. Cabeça aos pés. Corpo todo. Corpo de homem gasto. Eu, ainda límpido, água serena; eu, ainda fingido, dissimulado; eu, ainda gente, ainda humano, ainda sapiens; eu. As horas, os dias, o começo e o fim, nada com nada, bobagens descabidas, toda analogia barata que se possa usar, e, enfim, o arrebatamento impronunciável.
Num susto, o silêncio. Tudo, como num instante. Ele deitado. Respiração forte descendente. Respiração de homem gasto. O teto aberto, vazando. O quarto imenso.
Todo mundo começa assim.
Pode ser que sim.