Cinco poemas e um trecho de romance de Ésio Macedo Ribeiro
Ésio Macedo Ribeiro (Frutal – MG, 1963) é doutor em Literatura Brasileira pela USP, escritor, bibliófilo e fotógrafo. Autor de, entre outros, E Lúcifer dá seu beijo (Massao Ohno, 1993), Marés de amor ao mar (Arte Pau Brasil, 1998), Brincadeiras de Palavras: a gênese da poesia infantil de José Paulo Paes (Giordano, 1998), Pontuação circense (Ateliê Editorial, 2000), O riso escuro ou o pavão de luto: um percurso pela poesia de Lúcio Cardoso (Edusp/Nankin, 2006), 40 anos (Giordanus, 2007), Estranhos próximos (FAC, 2008), Drama em sol para o século XXI (Ed. do Autor, 2011), É o que tem (Patuá, 2018), Um olhar sobre o que nunca foi: (Urutau, 2019), Augusto 90 de fevereiros Campos (Galileu Edições, 2021); e organizador e editor da Poesia completa (Edusp/Imprensa Oficial SP, 2011) e dos Diários (Civilização Brasileira, 2012) de Lúcio Cardoso e, com Marília de Andrade, do livro de memórias Maria Antonieta D’Alkmin e Oswald de Andrade: marco zero (Edusp/Imprensa Oficial SP, 2003). O autor vive em Chicago, EUA, desde 2015.
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Do proibido
Não podemos mais pronunciar
As palavras
Que eles julgam
Não podem mais
Serem ditas.
Felizmente, dizer cu pode.
Mas esta é só uma teoria.
[do livro inédito Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto]
*
Da desforra
A sorte é que nunca pedi nada a ele.
Se o tivesse feito
Não seria livre para fazer o que penso
Nem para dizer o que me vergasta e dilacera.
Não pedi, porque era forte de opinião.
Também nunca me vinguei
Por nenhum convite não feito.
Era o avesso do certo
Não uma traição.
Ele também, fisgado pelo próprio ego
Pela inexatidão da fome que o afligia
Transmudado a plenos pulmões
Pelo grito
Nunca ofereceu.
Assim, andamos até ontem
Quando ele, por fim, sucumbiu.
Fui lá de embocado.
Levei flores, pus a mão em sua testa
Como o fazem os parentes próximos.
Antes de sair, abaixei-me
sobre ele, sussurrando livremente um palavrão em seu ouvido.
[do livro inédito Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto]
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Da pandemia VII
Um me diz que tem chorado todos os dias.
Outro, que seu colega de trabalho se suicidou.
Aquela lá avisa que não está dormindo bem.
Uma prima disse que nunca mais vai viajar.
Tem um que disse não descer mais pelo elevador.
Outro rapaz, que resolveu fazer um curso para ser corretor de imóveis.
Aquela moça, que tem medo de perder o emprego.
Um fotógrafo, que não pega nenhum trabalho há mais de quatro meses.
Alguns reclamam de uma louca gritando pelas ruas.
Uma vizinha revolta-se com as sacolas de compras na porta do vizinho escritor.
Um outro, que tem medo de que a mãe contraia o vírus.
Aqueles todos, que irão à praia sem medo nenhum.
Uns põem máscaras, mas nem todos são bandidos.
[do livro inédito Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto]
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Da pandemia VIII
E se eles não quiserem mais ler
E se eles não quiserem mais viajar
E se eles não quiserem mais ir a museus, teatros, cinemas
E se eles não quiserem mais ver TV
E se eles não quiserem mais dançar
E se eles não quiserem mais escrever
E se eles não quiserem mais telefonar
E se eles não quiserem mais jogar bola
E se eles não quiserem mais ir à praia
Ou visitar cachoeiras, parques, lagos, montanhas
E se eles não quiserem mais fazer ginástica
Pedalar, correr, caminhar
E se eles não reconhecerem mais uns aos outros
E se eles não quiserem mais construir
E se eles não ocasionarem mais divórcios
E se eles não quiserem mais ter filhos
E se eles não quiserem mais festas
E se eles não quiserem mais comer
E se eles se esquecerem quem são
E se na memória que restar não estiver mais quem existiu
E se eles não quiserem mais cortar os cabelos
As unhas, os pelos do púbis
E se eles não quiserem mais apertar um baseado
E se eles não quiserem mais droga de espécie alguma
E se eles não gostarem de pintar
Desenhar, bordar, costurar, esculpir
E se eles não entenderem que o tempo que eles conheceram acabou
E se eles, envenenados de horror, não transfundirem os sangues
E se eles não conseguirem mais transpor as portas
E se eles não estiverem mais aí, cá, lá, acolá
E se eles não desfrutarem mais das frutas dos pomares
Das matas, das florestas, dos quintais
E se eles cortarem todas as florestas e poluírem todos os mares
Rios, córregos, riachos, ribeirões, nascentes
E se eles todos morrerem até não existir mais ninguém
[do livro inédito Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto]
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Do parimento
Estou nascendo agora.
Sorrio muito porque tudo é novo.
Nada me fere.
Sinto a água que me lava a pele.
Tomo o leite que me alimenta.
(E que bom existir um alimento que supre todos!)
Às vezes, choro por não querer estar só.
Chupo o dedo.
Às vezes, todos!
Também acho bom cagar e mijar
Sem preocupação de se vai sujar, molhar ou feder.
Passo os dias, macunaimamente,
Ouvindo as canções que cantam para mim.
Sinto-me seguro onde me puseram.
Também me sinto amado.
Mas ainda não sei nada.
(E que bom é não saber nada!)
[do livro inédito Espero que possamos nos ver sem a mediação de algum defunto]
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É o que tem (trecho)
{O nome dela. Qual era o nome dela? Era alta, morena, tinha grandes seios & uma alegria que não parava. A conheci & já gostei. Enlouquecemos juntos. Parecidos. Éramos. Tínhamos sonhos iguais. Casar. Viajar. Ter. Fez um mês, dois, três. A gente não se desgrudava. Falávamossemparar. Amores que tivemos, os que queríamos ainda ter, da solidão, amiga de toda hora, dos despenhadeiros que tivemos que descer, das noites maldormidas, das sujeiras que fizemos, de música & de literatura. Mais do que tudo, gostávamos de música. Gostos & desejos parecidos. & foi indo tudo como a gente queria. Alimentávamos uma vontade de morar no Rio de Janeiro, de termos três filhos, a quem daríamos os nomes de Mário, Donato & Ludovico. Nem sabíamos o por quê. Uma fantasia atrás da outra íamos criando. Detonando com a nossa pobreza espezinhada, com a nossa indigestão de mundo, com a nossa sensaboria da vida. Olhávamos um nos olhos do outro & podíamos ver o futuro. Longe dali. Trabalhávamos juntos, na mesma loja enfadonha, nove horas por dia, em pé, quinze minutos para almoço, duas idas ao banheiro ao longo do dia. Para receber uma miséria. Para receber acintes o dia inteiro dos patrões, dois palestinos imigrados, que se deram bem porque exploradores de necessitados. Deu-se que, numa noite em que não estávamos para brincadeiras — tínhamos fumado duas imensas baganas de maconha com haxixe & tomado umas bolinhas — minha amiga & eu — ela tinha uma moto 150 cilindradas vermelha & preta —, subimos na Ira & fomos para um lugar longe de Brasília. Agarrando-me a ela, eu delirava no ritmo do vento que me trazia a ilusão de que tudo o que podia ser estava comigo agora. Ela, na frente, louca, tentando falar comigo, dividir aquilo que conspurcava dentro dela, suas ideias de homem ideal, de filhos, de ser uma atriz famosa. Não a ouvia. Era bem tarde da noite & chovia. Encharcamos. & o vento. & a chuva. Paramos num prédio & subimos a um apartamento de um cara que ela conhecia. Ela não tinha me dito para onde estávamos indo. Também não importava, eu estava na dela, ela estava na minha. Entramos, ele nos drogou mais. Pôs o The dark side of the moon para tocar. Falamos de coisas desconexas. Ela foi para o quarto com o cara. Fiquei na sala. Chamaram-me. Entrei. Os dois nus. Tirei minhas roupas. Transamos os três. A gente se beijando num ritmo alucinado. Nós três. Ele dava na nossa cara, na nossa bunda. Chamava-nos de “suas vagabundas”, “suas vadias”, “suas escrotas”. Outros impropérios… Nós queríamos que aquilo durasse a vida inteira. Ele era negro, forte, alto, tinha uma cicatriz na barriga, duas tatuagens de dragão, uma da virilha ao ombro direito & outra do cóccix até a nuca. Uma boca imensa & um sorriso que fazia enlouquecer. Os olhos eram verdes. Mas não tinha chifres. No meio da orgia, enquanto ele enrabava um & outro, a sensação de que tinha alguém dentro do armário nos observando, era esquisito, sentia um vento vindo de não sei onde, mas tudo estava — ou parecia estar — fechado. Paranoia. Depois de fazer & fazer, nos pôs para fora. Já era quase de manhã. A Ira, que deixamos encostada numa das pilastras do prédio dele, estava caída na lama. Sem nos importarmos com isto, subimos & seguimos. Sujos de lama & de gozo. Mudos. Ela me deixou em casa & se foi. No outro dia eu nunca mais a vi.}
[Trecho do romance É o que tem (Patuá, 2018), finalista no Prêmio Sesc de Literatura 2015 e semifinalista no Prêmio Oceanos 2019]