Colonização e tecnologia em O e-mail de Caminha, de Ana Elisa Ribeiro – Por Luiz Renato de Souza Pinto
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Letras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), e mais dois no prelo (pequenas narrativas), a exemplo de A filha da Outra (2020), o mais recente. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
Ana Elisa Ribeiro. “Minha atividade principal, aquela que declaro à Receita Federal e que paga todos os meus boletos, além de tomar imensa parte do meu tempo, é a de professora.
Atuo nos ensinos superior e médio do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais, o CEFET-MG, centenária e prestigiosa instituição de ensino.
Sou professora efetiva na sede, o campus I, em Belo Horizonte, desde 2006, onde ajudei a escrever uma história bonita: a fundação do curso de Letras (bacharelado em Tecnologias da Edição) e do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, mestrado e doutorado, com particular atenção à linha IV (‘4, como gosto de grafar), Edição, Linguagem e Tecnologia, institucionalizando uma visão independente do que sejam os estudos de edição”.
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Colonização e tecnologia
Dizem uns historiadores que a carta original é cheia de equívocos históricos. E se Pero Vaz de Caminha pudesse pesquisar uns links antes de escrever?
(Ribeiro, O E-mail de Caminha).
Em se tratando de Brasil, não se pode colocar a culpa de tudo na tecnologia contemporânea. Se as grandes navegações são a base da expansão marítima da Península Ibérica e se acá se achegaram os portugueses, tem-se que atribuir à bússola, à pólvora e à imprensa a gênese de todos os problemas em que estamos mergulhados desde sempre. A bússola possibilitou a navegação para além do Bojador, a pólvora legitimou a invasão de novas terras e a imprensa fez com que o inimigo soubesse que as grandes nações estavam cada vez mais fortes; vem de longe o afamado quarto poder.
Inúmeros intelectuais têm se debruçado sobre estas e outras questões. Recentemente perdemos mais um desses quadros, nosso país não é mais uma nação de jovens, está envelhecendo, envilecendo, rapidamente.
O traço grosso da dominação é inerente às diversas formas de colonizar e, quase sempre, as sobredetermina. Tomar conta de, sentido básico de colo, importa não só em cuidar, mas também em mandar. Nem sempre, é verdade, o colonizador se verá a si mesmo como a um simples conquistador; então buscará passar aos descendentes a imagem do descobridor e do povoador, títulos a que, enquanto pioneiro, faria jus. Sabe-se que, em 1556, quando já se difundia pela Europa cristã a leyenda negra da colonização ibérica, decreta-se na Espanha a proibição oficial do uso das palavras conquista e conquistadores, que são substituídas por descubrimiento e pobladores, isto é, colonos. (BOSI, 2000, p. 12).
Quando se trabalha com literatura brasileira, a primeira referência da qual se lança mão é a Carta de Pero Vaz de Caminha. Costumo dizer que o escrivão foi talvez o primeiro dedo duro a pisar neste solo, esta mãe gentil. E por que o faço? Se precisamos explicar que a literatura de informação era produzida de modo a ressaltar os aspectos descritivos da escrita, faço uso da analogia para explicitar as relações pictóricas que a semiose de Caminha proporciona para a leitura de El Rey. Era como se os seus escritos fossem os próprios olhos do soberano.
Em que pese a valor historiográfico do documento, há no mesmo elementos que caracterizam sua literariedade, como por exemplo a ambiguidade sarcástica de Pero Vaz ao se referir à genitália feminina, ironizada a bom termo por Oswald de Andrade em seus poemas da colonização. Os quinhentistas desfrutam das imagens do Brasil tropical, relidas pelos românticos, e pelos modernistas que, além de os lerem, também o fizeram aos românticos. Pero Vaz de Caminha, José de Alencar e Oswald de Andrade formam uma trinca à qual se podem juntar muitos outros.
Mas e se trouxéssemos para os dias de hoje essa elucubração que foi o estupro coletivo da terra virgem pelo navegador português, esse anti-épico da literatura nacional? Repare que aqui inverto o foco narrativo. Escrevo de aquém-mar, não de além. Claro que não ofereço um discurso contra-hegemônico, à La Gramsci, mesmo protegido pelo cronotopo bakhtiniano que faz do dialogismo peça de artilharia que avança para a frente e para trás.
Gosto da imagem da rebelião mineira para ilustrar esses momentos. Até porque inconfidente é aquele incapaz de guardar segredos, o que transporta a discussão para o hemisfério norte, para o além-mar. E das Gerais sopra o discurso inovador para discutir essa simbologia que nos aprisiona. “Aculturar um povo se traduziria, afinal, em sujeitá-lo ou, no melhor dos casos, adaptá-lo tecnologicamente a um certo padrão tido como superior” (BOSI, 2000, p. 17). Daí talvez a ideia de civilização, base das transformações da natureza movidas pela acumulação primitiva do capital.
Seguindo os passos da deambulação crítica, “O e-mail de Caminha”, de Ana Elisa Ribeiro, atualiza a problemática colonizadora empregada pelos portugueses. O livro discute de maneira muito bem-humorada a relação entre o escriba e o mandatário. Percebe-se como se dava o jogo de forças com o comandante da armada, o olhar para com os indígenas e a cobiça pelo ambiente metabolizado em moeda corrente.
Aqui há espaço para a informalidade, para as gags variadas que a língua permite em suas modalidades orais, para os caracteres criativos que são poderosos agentes comunicadores. Eu ousaria dizer que a edição é bilíngue, escrito em um português brasileiro de matriz oral e moderninha, sendo também apresentado o texto na íntegra em português contemporâneo, cuja edição de base foi a de 1963, da Editora Dominus.
Gostaria de ousar atiçando contra o fogo elementos do próprio corpus linguístico de Ana Elisa. Não seria uma experiência de retextualização a escrita do “E-mail de Caminha”? Não seria no campo literário um experimento de reflexão linguística? E quem disse que língua, linguística e literatura tem que ser apartadas por imposição de certa área de linguagens?
Mais do que intervenções de caráter meramente linguístico, a retextualização demanda a adequação de um texto a determinada situação comunicativa, o que pode implicar mudanças inclusive na composição entre informação, texto, linguagens empregadas e suportes. Esse replanejamento faz emergir a questão da multimodalidade, isto é, as camadas de discurso e recursos linguísticos e gráficos selecionados e combinados a fim de compor determinado produto legível. (RIBEIRO, 2010, p. 241).
A educação precisa atuar nesse palimpsesto de nossa cultura de modo a convidar os viajantes do conhecimento para que naveguem nas ondas das transformações culturais da humanidade. Todo e qualquer documento, antes de se transformar em monumento é ainda construto de um tempo determinado. Não se substituem as coisas, os objetos, impunemente. Em “A Caverna”, o romancista José Saramago atualiza Platão energizando os conceitos contraditórios da ordem do capital. Se a ideia era essa, não o sei, mas como Clarice Lispector, tenho forte tendência à adivinhação; penso que sim.
REFERÊNCIAS
BOSI, Alfredo. Colônia, Culto e cultura. In: Dialética da Colonização. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
RIBEIRO, Ana Elisa. O e-mail de Caminha. Belo Horizonte: RHJ, 2014.
RIBEIRO, Ana Elisa. Retextualização, multimodalidade e mídias no ensino de Português. In: Linguagem, tecnologia e educação. RIBEIRO, Ana Elisa et all (orgs.). São Paulo: Peirópolis, 2010.