Fabulosas fábulas – Por Caio Augusto Leite
Na coluna mensal “As armas secretas” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Caio Augusto Leite escreve sobre livros, CDs, peças, filmes e outras obras criadas por artistas contemporâneas e/ou contemporâneos. A palavra de ordem é: ‘hoje’. O título da coluna é uma homenagem ao grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e a seu livro Las armas secretas (1959). A coluna irá ao ar sempre na primeira sexta-feira do mês.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector, integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013) e A repetição dos pães (7 Letras, 2017), além do livro de contos ainda no prelo Terra trêmula (Caiaponte edições).
***
Fabulosas fábulas
Em Homens e outros animais fabulosos (Patuá, 2018), João Paulo Parisio constrói narrativas que buscam emular, a partir de enredos, referências e usos lexicais, a potência das fábulas, ou seja, das narrativas exemplares que construíram a humanidade. São contos em que a noção temporal é borrada, uma vez que nunca fica claro em que momento da História está localizada a ação. Logo, pode-se dizer que tais contos estão situados num tempo místico – o tempo das lendas –, embora seus temas sejam muito humanos.
O primeiro conto, “Boneca-de-Pano”, demonstra bem essa relação entre tempos atravessados, pois ao mesmo tempo em que se percebem referências “modernas” – como o tear, o triciclo, a luz elétrica, a Cooperativa – há também uma ambientação que remete aos contos de fadas – a dama na torre, a bela e a fera, a gata borralheira. O mesmo se percebe em “Nêfelis”, que nos apresenta a giganta num tempo em que se presumia não existir mais tais seres e por isso é caçada; em “José K”, que traz um Kafka contemporâneo que é ao mesmo tempo o autor e o personagem de O processo; em “Clepsidra” em que o tempo marcado pelo signo das águas remete tanto ao Nordeste brasileiro como ao Egito do Moisés bíblico também salvo por outra mulher.
Além do tempo, também há referências explícitas a seres mitológicos – sereias, grifos, Ariadne etc. – que corroboram esse embaralhamento de referências atuais e arcaicas. Nos textos, os seres mitológicos são apenas seres, pois sua existência é ratificada pelos narradores, não como figuras ficcionais, mas como parte da memória de um tempo que é o real dentro do rigor das narrativas. Se há o fantástico, ele se apresenta assim a nós, e não aos personagens que convivem com ele no âmbito da normalidade. Pois mesmo o espanto em “O observador” (causado pela visão da existência primária) é superado, uma vez que sua presença parece ter sido desde sempre pressentida; há mais um reconhecimento do que uma descoberta.
Importante notar, também, que os contos de Parisio possuem um sentido inegavelmente trágico. Neles, as personagens em trânsito passam de estados de pureza/beleza/comodidade (a bela Boneca-de-Pano, a idílica Nêfelis, a branca folha numa gaveta, entre outros) e acabam por se verem destituídas de suas próprias esperanças, exauridas por conta de suas próprias ações (a soberba imparável – à la Aquiles – de Kafka ao jogar futebol) ou pela ação de outros (a família substituída por seus duplos em “A idade da revelação”). Não que os finais sejam categóricos em sua tragédia (como ocorre no final fatal de “Bio Boi”), pois por vezes surge a possibilidade de um retorno cíclico que possa ao menos pôr novamente em marcha a vida (como em “Clepsidra” ou “O observador”, contos marcados pelo signo do nascimento).
Por fim, é preciso atentar que as narrativas só conseguem atingir essas camadas mais profundas de um tempo imemorial-contemporâneo por conta do uso engenhoso da linguagem, que une neologismos, arcaísmos, termos atuais, gírias. E também pela presença da função poética da linguagem, percebida em aliterações, assonâncias, paralelismos, rimas etc., da qual o exemplo mais notório é a conversa das lavadeiras em “Bio Boi”.
Esses elementos mencionados são os mais gerais, em cada conto o autor aplica sua técnica a par da temática pretendida (elementos de contos de fadas em “Boneca-de-Pano”, signos de aridez/liquidez em “Clepsidra”, jogo de claro e escuro em “A idade da revelação”, por exemplo). Tal consciência faz de cada conto uma peça única, apesar das semelhanças de base. Mérito do escritor, que além de fabuloso é, também, um animal fabulante.