Um poema de Adrienne Rich em tempos de peste – Por Fabiano Calixto
Na coluna mensal “Ruas de um saxofonista do absurdo” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Fabiano Calixto escreve crônicas sobre a cidade, seus lugares, aqueles que a habitam e são por ela habitados. A coluna irá ao ar sempre na penúltima sexta-feira do mês.
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É poeta. Vive em São Paulo. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, USP. Dirige, com Natália Agra, a editora de poesia Corsário-Satã. Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (@Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ Editora 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (Editora 7Letras, 2013), Equatorial (Edições tinta-da-china, 2014) e Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014). Sua educação sentimental foi ministrada pelos Beatles, por Raul Seixas e pelos Ramones, alguns dos grandes mestres da Universidade Desconhecida. Evita relação com pessoas de temperamento sórdido. Edita, com Natália Agra, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Guilherme Pinheiro, a revista de poesia Meteöro. Seu próximo livro de poemas, Fliperama, será lançado em 2020.
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Um poema de Adrienne Rich em tempos de peste
Vivemos, hoje, uma aterrorizante pandemia de Covid-19 – corona vírus. A coisa está tão violenta que nossa vida foi e está sendo afetada de maneira pesada. Há notícias de grande número de mortes por todo o planeta, informações desencontradas de governos e mesmo de especialistas, ninguém sabe direito o que pode acontecer. No início, a ideia era a de que para idosos a coisa é mais fatal, agora já não se sabe, pois há fatalidade também entre pessoas mais jovens e até crianças. Não se sabe se o vírus será domado – se sim, quando? e como?; se não, o que acontece depois de o sistema quebrar? Isso impacta a sociedade de maneira brutal, uma devastação não só material como também psicológica, pois o chão vai sumindo. Em tempos de fim de mundo, qual novo mundo nos aguarda? Devemos esperar o completo colapso da máquina, da civilização? Ninguém sabe.
De minha parte, só acredito na saída coletiva. Solidariedade.
De qualquer modo, sigamos. Atentos, fortes e, contribuindo para frear a peste, com as mãos bem lavadas.
Neste mês em que o caos se aproximou muito e funga em nosso cangote, resolvi trazer, para nos ajudar a viver nestes tempos de peste (como tantos grandes artistas brasileiros, de todas as linguagens, estão fazendo), uma das traduções que fiz de um poema que amo muito da poeta norte-americana Adrienne Rich (1929-2012). Arte para mim (e para muita muita gente) é vital. Meu amigo, o cantor e compositor Gustavo Galo, diz que “música também é comida. para mim, por exemplo, é”. Penso no mesmo caminho: poesia é comida. Pelo menos para mim. Então, divido com vocês, caros leitores e amigos, estes pães.
O poema faz parte de meu livro de traduções, intitulado Metal pesado, a sair em 2021. O livro é composto por poemas que fui traduzindo durante minha vida, por puro prazer – de autores como Allen Ginsberg, Lawrence Ferlinghetti, Laurie Anderson, Amiri Baraka, Tracy Chapman, Jim Morrison, Patti Smith, Bob Dylan, Adrienne Rich, John Lennon, Phil Lynott, Charles Bukowski, Benjamín Prado, Roberto Bolãno, Gonzalo Rojas, Heriberto Yépez, entre outros.
Quando traduzo um poema que me atrai, busco sentir seu timbre para, a partir daí, decidir o tom da tradução. Gosto de traduzir de dois modos: uma tradução mais próxima ao original, quando acho que, para minha sensibilidade, o poema exige, ou o que chamo de “transalucinação calixtotélica”, tradução poética, tradução-transe, luciferina, um labor satânico. Tudo vai depender do poema. Bem, em matéria de teoria da tradução, meu paladar aprecia as ideias faiscantes e vivas de Haroldo de Campos (1929-2003), principalmente as contidas em seu magnífico ensaio “Transluciferação mefistofáustica”, publicado em 1981 em Deus e o diabo no Fausto de Goethe.
Gosto muito da ideia de tradução como portadora, mensageira (como pensava Walter Benjamin e que Haroldo comenta no referido ensaio), trabalho de exu-xamã, pulsão dionisíaca, delirismo. Comento mais a respeito no texto introdutório ao Metal pesado.
Por enquanto, é isso, caros leitores. Fiquem com “Cartografias do silêncio”, de Adrienne Rich. Saúde! E até o mês que vem!
CARTOGRAFIAS DO SILÊNCIO
1.
Uma conversa começa
com uma mentira. E cada
falante da língua ordinária sente
a fina camada de gelo romper-se, o afastamento
como uma impotência, como se contra
uma força da natureza
Um poema pode começar
com uma mentira. E se romper.
Uma conversa tem outras leis
se alimenta com sua própria
falsa energia, não se estilha-
ça. Infiltra-se em nosso sangue. Repete-se.
Grava, com seu destemido estilete,
a solidão que recusa.
2.
A estação de música clássica
tocando sem parar no apartamento
Pegar e largar, pegar
e de novo largar o telefone
As sílabas pronunciando
o velho roteiro novamente
A solidão do mentiroso
vivendo na estrutura formal da mentira
girando o dial para afogar o terror
sob a palavra muda.
3.
A tecnologia do silêncio
os rituais, etiqueta
A indefinição dos termos
silêncio, não ausência
de palavras ou música ou ainda
sons selvagens
O silêncio pode ser um plano
rigorosamente executado
– a cópia heliográfica de uma vida –
É uma presença
tem uma história e uma forma
Não o confunda
com uma ausência qualquer
4.
A mim, estas palavras começam a parecer
calmas e inofensivas
embora acesas em mágoa e raiva
Posso atravessar este filme do abstrato
Sem ferir a mim ou a você
Aqui há dor suficiente
Será por isso que a estação dos clássicos do jazz toca?
Para dar sentido à nossa dor?
5.
O silêncio completamente nu
N’A paixão de Joana, de Dreyer
O rosto de Falconetti, o cabelo raspado, uma bela geografia
registrada em silêncio e enquadramentos
Se houvesse onde isto pudesse acontecer
Não como espaços em branco ou palavras
estiradas como uma pele sobre os sentidos
mas como o silêncio que desaba no fim
de uma noite em que duas pessoas
conversaram até o amanhecer
6.
O grito
de uma voz bastarda
Deixou de ouvir-se, então
se pergunta
Será que eu existo?
Este era o silêncio que eu queria quebrar em você
Tinha perguntas, mas você não as respondia
Tinha respostas, mas vocês não podia usá-las
Isto é tão inútil pra você como para todos os outros
7.
Era um tema velho, mesmo para mim:
A linguagem não pode tudo –
Escreva com giz nas paredes dos mausoléus
onde os poetas mortos memorizam a aurora
Se um poema pudesse, pela vontade do poeta,
transformar-se em coisa
Um flanco nu de granito, uma cabeça erguida
acesa em orvalho
Se simplesmente eu pudesse fitar seu rosto
Olhos nos olhos, sem que você se virasse
até que você (e eu desejo tanto que isto)
enfim, que fôssemos iluminadas pelo seu olhar
8.
Não. Deixa-me tocar esta terra,
estas pálidas nuvens se espreguiçando, estas palavras
que se movem com precisão feroz
como os dedos de uma criança cega
ou a boca violenta de fome
de um recém-nascido
Ninguém pode me dar, adotei
este método faz muito tempo
do cereal que escorre do saco puído
ou da chama fraca e azul do fogão
Se de tempos em tempos invejo
enunciações que chovem flores
A visio beatifica
se de tempos em tempos quero retornar
como o hierofante eleusino
empunhando uma simples espiga de trigo
regressar ao mundo concreto e eterno
que é ainda de fato minha escolha
são estas palavras, estes sussurros e conversas
de onde sempre germina, úmida e ainda verde, a verdade
maira tukui
linda tradução, linda trajetória fabiano calixto.
fiquei curiosa como definiria esta tradução de Adrienne Rich?