Instantes codaques de um inverno furioso – Por Fabiano Calixto
Na coluna mensal “Ruas de um saxofonista do absurdo” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Fabiano Calixto escreve crônicas sobre a cidade, seus lugares, aqueles que a habitam e são por ela habitados. A coluna irá ao ar sempre na penúltima sexta-feira do mês.
Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns (PE), em 1973. É poeta. Vive em São Paulo. Doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, USP. Dirige, com Natália Agra, a editora de poesia Corsário-Satã. Publicou os seguintes livros de poesia: Algum (edição do autor, 1998), Fábrica (@Alpharrabio Edições, 2000), Música possível (CosacNaify/ Editora 7Letras, 2006), Sanguínea (Editora 34, 2007), A canção do vendedor de pipocas (Editora 7Letras, 2013), Equatorial (Edições tinta-da-china, 2014) e Nominata morfina (Corsário-Satã, 2014). Sua educação sentimental foi ministrada pelos Beatles, por Raul Seixas e pelos Ramones, alguns dos grandes mestres da Universidade Desconhecida. Evita relação com pessoas de temperamento sórdido. Edita, com Natália Agra, Rodrigo Lobo Damasceno e Tiago Guilherme Pinheiro, a revista de poesia Meteöro. Seu próximo livro de poemas, Fliperama, será lançado na próxima década.
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INSTANTES CODAQUES DE UM INVERNO FURIOSO
Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher está entrando em seu terceiro mandato e fala confiante de uma liderança ininterrupta dos Conservadores no próximo século. Minha filha caçula tem sete anos e um jornal tabloide acalenta a ideia de um campo de concentração para pessoas com AIDS. Os soldados da tropa de choque usam visores negros, bem como seus cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo expressou o desejo de erradicar a homossexualidade até mesmo como conceito abstrato. Só posso especular sobre qual minoria será alvo dos próximos ataques. Estou pensando em deixar o país com minha família em breve, esta terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não gosto mais daqui.
Alan Moore
Introdução ao V de Vingança (1988)
Arthur Fleck é menos um revolucionário anarquista – não há razão política a comandar seus atos – que um homem sedento de ficção, de teatro, de comédia, de dança, um homem, contudo, rodeado de seres mesquinhos, apáticos, perversos, soterrado num mundo onde o real implacável não se abre jamais para a fantasia, para a poesia redentora do Mal. Não vejo em Coringa sombra de ressentimento, mas explosão de uma vitalidade em paroxismo, uma vitalidade em contraste com um mundo que é pura doença, em sua recusa do corpo, do amor, do prazer, uma vitalidade que a psicose – igualmente ignorada pelo sistema – sob extrema pressão converte finalmente em violência, violação desesperada dos limites desvitalizantes impostos pela “razão” ultra-capitalista.
Eduardo Veras
Ando muito pela cidade. É um prazer para mim. Conheço o centro de São Paulo razoavelmente bem. Seus botecos pé-de-rato, os mosca-frita, os old school, os da renovação pastilhista, por aí vai. Grande parte das memórias que a cidade guarda na gente é construída pelos seus botecos, que são os lugares dos encontros, dos papos, das tramas. Isso tem mudado. Os botecos estão vazios. Muitos estão fechando. Outro tanto vai colocando seus cercadinhos tristes e ridículos.
As ruas só têm falado furiosamente nestes últimos tempos através da caligrafia gritante e engenhosa de suas pixações. Às vezes, também, por meio de alguns de seus grandes poemas. A boemia vai dando espaço a bares caros e exclusivos – pequenos templos de dinheirolatria. As ruas vão ficando desertas. Desde que me mudei do ABC para cá, em 2010, nunca vi a cidade assim tão triste, esvaziada, abandonada. Os tempos estão esquisitos.
Outro noite, fomos, eu e Natália, assistir ao Coringa (2019), de Todd Phillips. Saímos assombrados do cinema. O filme é uma maravilhosa ode antiausteridade. Coringa é sobre a incessante violência das elites apoiadas pelo Estado contra o(s) sujeito(s). É sobre o massacre do(s) sujeito(s) até o ponto de quebrá-lo(s) totalmente, por dentro e por fora. É sobre a expropriação da camada mais pobre da população (por gerações e gerações), é sobre massacre social, é sobre o horror capitalista.
Segundo a segundo, tudo é muito intenso no filme – a cena da dança nas escadarias é antológica. “Coringa é antes de tudo um dançarino, um homem de cores, inicialmente pálidas, posteriormente gritantes”, bem observa o craque Eduardo Veras, grande ensaísta destes nossos tempos sombrio. (As cores deste Coringa me remeteram, de imediato, ao magistralmente cômico Coringa de Cesar Romero da série pop dos anos 60). Parece-me inescapável fugir da interpretação de Joaquin (até porque ela nos persegue, abre campos e camadas, alinha planetas e papos): há muito tempo não me encantava tanto com uma atuação. Grande Joaquin Phoenix! Saravá!
Aliás, “Jokerman” é uma canção de Bob Dylan. “Joquim” é uma versão linda de Vitor Ramil para o clássico dylaniano. Joaquin Joker já cantando e dançando por lá (como aqui, já que lá é também aqui):
Joquim, Joquim
Nau da loucura no mar das ideias
Joquim, Joquim
Quem eram esses canalhas
Que vieram acabar contigo?
Há um saber muito luzente na loucura do Coringa. Isso é muito curioso. É um homem alquebrado que, esgotado (homem arrasado na terra arrasada), se movimenta entre o lúdico e o lúcido, e esse espaço, esse vão, é muito complexo e cheio de tensões, camadas, arestas. É um dos pontos legais do filme.
“O que anuncia esse saber dos loucos? Sem dúvida: uma vez que é o saber proibido, prediz ao mesmo tempo o reino de Satã e do fim do mundo; a última felicidade e o castigo supremo, o todo-poder sobre a terra e a queda infernal.”, diz o Michel Foucault lá na História da loucura na Idade Clássica. (Perspectiva, 2009, p.21). O reino de Satã, das vitalidades e delícias existenciais, espírito tupinambá, anárquico; o fim do mundo, o fim do mundo de expropriação capitalista, rastilho de caos, átomos ingovernáveis. (Não eram os caraíbas, para os invasores europeus, os “profetas de Satanás”?).
Coringa fala da sociedade com o discurso da sociedade, não do Estado.
A lua estava bonita aquela noite. Caminhamos pela cidade e comentamos que Bacurau, de Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e Coringa, foram filmes que gostamos muito de ter assistido neste 2019, neste fim de década melancólico.
“Perigosos”, alardeou a elite ilustrada. “Que sejam perigosíssimos”, cantou o poeta Dirceu Villa. Polos de contágio carbonários. É isso aí!
Uma pesquisa do IBGE, noticiada pela Folha de S. Paulo no dia 16 de outubro, mostra que 104 milhões de brasileiros (104 milhões de brasileiros [104 milhões de brasileiros] 104 milhões de brasileiros) vivem com R$ 413,00 mensais. Não é uma coisa obscena? Tenebrosa? Brutal? Como se mora, se come, se estuda, se cuida da gripe, se vive com R$ 413,00 mensais? É escárnio, é violência.
A população de moradores de rua da cidade de São Paulo só cresce. Em matéria de junho deste ano, a mesma Folha de S. Paulo mostra que a população de rua aumentou 66%, quase dobrando em três anos. São mais de 24 mil pessoas morando nas ruas da cidade (dados do censo municipal 2020). Isso apenas os pegos pelo radar da assistência social, sabemos que a coisa é ainda mais brutal para além da fronteira das estatísticas. Essa situação é uma derrota brutal, é sinal evidente de uma sociedade podre.
A cidade está tão deteriorada moralmente que a situação dos moradores de rua simplesmente não aflige mais ninguém. Tudo se tornou parte da paisagem cinzenta, tenebrosa, pele viscosa de indiferença e crime que a sociedade optou por vestir. Que tipo de sociedade é esta? Ninguém sabe responder.
Os moradores de rua serão incluídos no censo 2020? A ver.
Com tantos prédios vazios (dos herdeiros parasitas de todas as grandes cidades deste país) como pode ser aceitável que as pessoas estejam morando nas ruas?
Questões.
As ruas da cidade estão sujas. Plástico para todo lado. Uma sociedade de plástico, com a alma já também plastificada. Uma matéria do The Intercept Brasil chamada “Só lixo – Como a indústria de plásticos luta para continuar poluindo o mundo” (de 29 de julho deste ano) traz algumas informações tenebrosas:
As terríveis notícias sobre o plástico parecem ser tão inescapáveis quanto o próprio plástico, cujos pedaços minúsculos agora estão em quase toda parte. Um estudo descobriu esses microplásticos no ar da montanha dos Pirineus, a mais de 160 quilômetros de distância da cidade mais próxima. Outro descobriu que os microplásticos estão sendo transformados em lodo de esgoto e espalhados em campos que cultivam alimentos. E, como sabemos pelas baleias cheias de plástico que regularmente voltam mortas à superfície, os oceanos estão repletos de resíduos de plástico e agora contêm cerca de 150 milhões de toneladas do material – uma massa que em breve ultrapassaria o peso de todos os peixes nos mares.
Eduardo Viveiros de Castro, em sua última e ótima entrevista (para a Agência Pública), diz:
O que me preocupa mais de tudo é a crise ecológica. O problema é que ela atinge o que a gente pode chamar de condições realmente materiais de existência. Não é o salário; é o ar. Não é o emprego; é a água. […] Esse tipo de crise é uma crise que, para que se possa sobreviver a ela, você precisa de uma radicalidade nas mudanças da forma que se tornou hegemônica no mundo. Mudanças muito radicais, que não vão ser três torres eólicas que vão resolver. Vai precisar de muito mais que isso, vai precisar de uma mudança radical nos padrões de consumo, das sociedades desenvolvidas, de uma redistribuição radical dos recursos pela população do planeta. Mas é mais fácil, em vez de acontecer isso, que aconteça outra coisa, guerras genocidas, extermínios maciços de população, destruições gigantescas de meio ambientes inteiros… É por isso que eu não sou muito otimista, né?
Quer dizer, difícil ser otimista. A sociedade cava a própria cova e acha isso ótimo, é uma startup promissora e incansável em sempre foder com tudo. A pauta ecológica me parece a pauta capaz de agregar outras pautas e as populações (justamente porque, como aponta Viveiros de Castro, afeta diretamente as condições materiais de existência, é causa de todo o mundo – a não ser dos aloprados da elite que desgraçadamente mandam e desmandam nas coisas desse planeta e não têm nem vergonha na cara, nem limites; não prestam pra nada, mas são capazes de tudo). A ecologia e, claro, a luta de classes.
Os tempos estão turbulentos. Precisamos mesmo de radicalismo. O centenário poeta Lawrence Ferlinghetti, em entrevista de 2012, concorda (ao ser perguntado por que acreditava estar se tornando um sujeito cada vez mais radical):
A pressão do tempo é que dita isso. Tempos radicais pedem respostas radicais. O mundo está num péssimo estado. Lembro que tive uma conversa com Günther Grass em 1975. Ele disse que acreditava que, no final do século 21, as nações tal como as conhecemos não existiriam mais e o mundo estaria coberto de hordas étnicas lutando por comida e abrigo. É uma visão terrível do futuro, mas não é impossível diante do que vivemos. Precisamos lutar.
Outra matéria (“Ser humano pode estar comendo um cartão de crédito por semana, diz estudo”, na Exame de 12 de junho deste ano) nos diz que a quantidade de plástico que consumimos toda semana é equivalente a um cartão de crédito. Um cartão de crédito! A coisa chega a níveis tão absurdos que custamos acreditar.
Em breve teremos mais plástico que peixes nos mares. Em nossa dieta alimentar está incluído um cartão de crédito por semana. A carne está podre, a água infecta. A comida cheia de agrotóxico. Os rios morrendo, os mares também. As florestas sendo incendiadas. O ar, poluído.
Mas é aquilo: sabendo do caminho para o abismo, a sociedade, achando que está tirando vantagem, pisa fundo no acelerador. São tempos difíceis, tempos de peste.
Outro dia, dentro do velho trem suburbano a caminho de Santo André, ouvi, na ponta extrema do vagão, uma tiazona, sentada e raivosa, xingar e humilhar um homem de muletas que pedia esmolas. “Lá no meu trabalho, pessoas muito piores que você estão lá. Vai trabalhar vagabundo!” – babando de ódio, soltava escrotices desse tipo sem parar. Todos atônitos. A estação seguinte chegou, o homem de muletas saiu. A tiazona continuou a destilar seu ódio, a disparar sua metralhadora de violências. O ódio está no ar, fétido e maciço, como um tijolo de rapadura.
Em um de seus clássicos dos anos 60, o compositor baiano Tom Zé canta:
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
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“A tensão está grande. O povo sente o desconforto, está lutando, procurando emprego. São tempos difíceis.”, diz o Coringa daquela Gotham infecta, esbagaçada pela ganância e pela corrupção, tal qual o nosso mundo concreto.
“Estamos sendo atacados”, diz Lunga (o deslumbrante personagem de Bacurau).
Conversas.
Todos estão cansados. A Era das rebeliões planetárias recomeçou. Muito tempo de passada de perna, de diálogo com quem te cumprimenta com uma mão e te esfaqueia com a outra. Como diz Vladimir Safatle, no texto “Chega de diálogo. A partir de certo ponto é apenas inútil”, em sua coluna no El País (de 14 de setembro deste ano):
De todas as ilusões que se desfazem atualmente no Brasil, uma das mais urgentes a se livrar é aquela que leva alguns a acreditar que nosso momento histórico pede mais diálogo. Ao contrário, é possível que chegou enfim a hora de dizer claramente: chega de diálogo. A partir de um certo ponto, dialogar é não apenas inútil. É espúrio. Se há algo que marcou o Brasil nos últimos trinta anos foi a profusão de diálogo. Nosso fim da ditadura foi “dialogado”. Antigos oposicionistas, militares torturadores, empresários que apoiaram o golpe e financiaram crimes contra a humanidade: todos eles “dialogaram”, fizeram uma transição “sem revanchismo” (como se dizia à época), sem nenhum terrorista de estado na cadeia. Depois, os governos da Nova República eram todos marcados pelo “diálogo” entre esquerda e direita, mesmo o PP que abrigou o sr. Jair Bolsonaro por 27 anos estava em todas as coalizões de governo. Todos “dialogaram” com Bolsonaro, mesmo quando ele expunha claramente seu desprezo a princípios elementares de direitos humanos. Em uma situação minimamente normal, seus impropérios como deputado teriam lhe valido a cassação de mandato. Como se não bastasse, até mesmo com as igrejas evangélicas o que não faltou foi “diálogo”. Edir Macedo estava lá “dialogando” com Lula e Dilma. O PSC do sr. Marco Feliciano fazia parte da coalizão de Dilma Rousseff. Mais um com quem não faltou “diálogo”.
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Uma das fotos mais terríveis e sintomáticas de nosso tempo: a inauguração, em 31 de julho de 2014, do Templo de Salomão, obra da famigerada Igreja Universal, com a presença do prefeito da cidade de São Paulo, do governador do estado e da presidenta da república.
Quer dizer, sempre houve diálogo. A questão é que todo esse diálogo resultou sempre em traição, desgraceira, coalizões pútridas, fins lamentáveis, como apontou aí o Safatle.
E isso esgota, aflige, adoece, humilha, enche o saco. E as pessoas estão de saco cheio. No mundo todo. Em todo território planetário.
O título original de Noturno do Chile (2000), magnífico romance do chileno Roberto Bolaño, seria Tempestade de merda. Depois de muito refletir e conversar inúmeras vezes com seu editor (e, nisso, repetir muitas vezes o título que não vingou), começou a sentir nojo da escolha. Era merda demais, uma tempestade de merda, e isso poderia “inclusive acabar com a paciência do próprio autor”.
É isso. Ninguém aguenta mais tanta e ininterrupta tempestade de merda. Desespero infinito. As pessoas cansam de tanta humilhação, tanto escárnio, tanta miséria.
Nightsticks and water cannons, tear gas, padlocks
Molotov cocktails and rocks behind every curtain
False-hearted judges dying in the webs that they spin
Only a matter of time ‘til night comes steppin’ in
Em “Déjenlo todo, nuevamente – Primer Manifiesto Infrarrealista”, assinado por Roberto Bolaño, se lê:
Los burgueses y los pequeños burgueses se la pasan en fiesta. Todos los fines de semana tienen una. El proletariado no tiene fiesta. Sólo funerales con ritmo. Eso va a cambiar. Los explotados tendrán una gran fiesta. Memoria y guillotinas. Intuirla, actuarla ciertas noches, inventarle aristas y rincones húmedos, es como acariciar los ojos ácidos del nuevo espíritu.
A loucura, moçada, é justamente essa: a luta justa e obsessiva por dignidade, busca incansável pela felicidade, batalha feroz contra o sucateamento da vida. Luta de classes. Espírito Tupinambá.
“Fusión y explosión de dos orillas: la creación como un graffiti resuelto y abierto por un niño loco”. Menino louco, quem são esses canalhas que vieram acabar contigo?
“A prática do internamento, no começo do século XIX, coincide com o momento no qual a loucura é percebida menos em relação ao erro do que em relação à conduta regular e normal; no qual ela não mais aparece como um julgamento perturbado, mas como perturbação na maneira de agir, de querer, de ter paixões, de tomar decisões e de ser livre”. Tá lá no Resumo dos cursos do Collège de France. (1970-1982), de Michel Foucault (Zahar, 1977, p.48).
Ligue os pontos.
Ainda uma vez Ferlinghetti: “Quando alguém escreve para valer é, em essência, um ativista. É importante agir. Não dá para ficar sentado em casa. Não fique sentado aí, seu estúpido, o mundo está em chamas!”.
Mas que filme, o Coringa! Aquela fotografia escura (ainda que com seus [co]lapsos multicoloridos) para tempos escuros. Como aqui. Todo o centro da cidade, que em tanta memória aparece cheio de luzes, está na escuridão. Iluminação quebrada por todo canto, nada funciona ao mesmo tempo em que tudo parece funcionar normalmente. A cidade está largada. A cidade está lascada.
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
“São, São Paulo / Quanta dor”. Se bobear o abismo abraça? Aqui não, irmão. Viver em São Paulo é já estar o tempo todo abraçado pelo abismo.
O abismo, esse espelho que temos que atravessar. O espelho que não apenas reflete o objeto, mas com ele dialoga, criando perspectivas fluidas, trans-formando-o (narrativas gradientes de infinitas combinações – não são duas imagens distintas, tampouco duas imagens iguais, mas imagens em constante troca, mutação, transe e transitoriedade) num diálogo vertiginoso que se desdobra em informações não-redundantes dos sujeitos possíveis no coração do objeto. O coração da coisa.
Coexistências de tempos no interior do Tempo (as metáforas do cinema, a insatisfação planetária, o íntimo e o espetáculo, os embates no interior de tudo isso, as múltiplas camadas, “Por seres tão inventivo / E pareceres contínuo”, portais, praias, e tudo o mais – não mais como campos separados em categorias estanques, mas misturadas numa dinâmica caótica de embate filosófico-cultural no centro de uma crise planetária que ninguém vislumbra saída).
Imagem-estilhaço-espelho que faz tudo coexistir e onde as barreiras foram todas implodidas e tudo se complementa (o que é, afinal e hoje, o real?). Atritos – e, com suas faíscas, acendemos as tochas com as quais iluminamos e formamos nossas imagens de mundo(s). Estamos sempre tateando as trevas e sendo abraçados pelo abismo. O Terceiro Mundo vai explodir quem tiver de sapato não sobra!
Devir-devir no horizonte amplo da vontade constante de experimentação empírica. Fomes, desejos, arte. Grandes mergulhos. Eis o grande lance: ecologia e erótica. Política e poética.
Cristais de tempo-memória com os quais podemos construir ilhas inteiras de zilhões de outros cristais com perspectivas ácidas, onde os desejos não sejam mediados por uma vida dada e já corroída ou pelo policiamento afetivo de qualquer espécie, ou qualquer coisa do tipo, mas seja refundada criativa e coletivamente, ecológica e eroticamente. Quer dizer, um campo de possibilidades humanas (com toda sua multiplicidade, inventividade e contradições) contra o tsunami de reacionarismo destes tempos de peste.
Quem nos meteu na cabeça que deveríamos ser felizes? – diz o zagueiro, que errou na marcação, para o goleiro de seu time que fez de tudo, mas falhou, na hora da virada fatal, aos 17 minutos do segundo tempo da prorrogação.
Estaríamos criando novas poéticas da vida através do caos? – pergunto-me sempre ao caminhar tarde da noite por essas ruas com seu olhar de ressaca e cheiro de merda. Ou apenas rumamos calmamente ao abismo? São tempos difíceis, muito difíceis.
O presente passa para que o passado se presentifique (justamente porque ele é – está pulsando a todo instante em todos os presentes) num lance de futuro – aquele futuro guardado no estojo impreciso e fugaz do aqui-e-agora. Coexistências que se entrecortam, entregerminam, entreperfumam, interpenetram. Presentes. Presenças. Roteiros. Roteiros. Roteiros. O instinto caraíba. A magia e a vida.
“Mirava-me, também, em marcados momentos – de ira, medo, orgulho abatido ou dilatado, extrema alegria ou tristeza. Sobreabriam-se-me enigmas.”. Evoé, Guimarães Rosa!
Tempo de enigmas em vertigem que fazem enlouquecer as placas tectônicas da geopolítica mundial.
Voltava para casa, numa dessas noites chuvosas, dessas raras vezes em que as luzes públicas do centro da cidade funcionam, e fazem a cidade ficar bonita (com o reflexo da luz dos postes e dos faróis nas poças d’água formadas no asfalto que dão um colorido aconchegante à paisagem hostil). Caminhava a pensar na semelhança entre esta São Paulo de 2019, já afetada pela peste (da elitização, da imbecilização, da expropriação capitalista, da austeridade, do ódio), e a Nova York, tanto a de Coringa quanto a de Watchmen (1986), clássico de Alan Moore e Dave Gibbons: uma cidade paranoica, suja, cheia de crime e corrupção, com fanáticos de todo tipo por toda parte. Nas páginas de Watchmen podemos ler, nos cartazes e jornais, coisas como: “O fim está próximo”, “Russos invadem o Afeganistão”, “Mulher é morta enquanto vizinhos assistem”, “Abrigo Nuclear” (vejam só, até o medo da bomba atômica está de volta!). Enfim, uma cidade acossada pela própria sociedade que a habita. É, não tá rolando ser otimista.
Ajeitei os cotovelos no balcão e pedi ao Everaldo um rabo de galo (cachaça com vermute) e um torresmo. A TV ligada no jornal da noite, cenas do cabaré político nacional – a odisseia ordinária da súcia de gente de quinta categoria que tomou conta do poder em todas as esferas da sociedade nacional. Que coisa triste!
quem me dera um abutre
pra devorar meu coração!
naco de carne crua
comida de pé no balcão!
Esse trecho do Leminski voou pela lembrança e, quando chegou o torresmo, perguntei ao Everaldo, o camarada que comanda o boteco aqui perto de casa, sobre as injustiças da “Justiça” com relação a Lula. (Everaldo me chama de Professor, pois, muitas vezes, ao voltar das aulas noturnas, passava por lá para molhar a caveira e jogar conversa fora).
– Pois é, Professor, pois é. Mas o que podemos fazer? Quem é que vai julgar o dono da bola né?
– Nem me fale, Evera, nem me fale…
“Quem vigia os vigilantes”, onde Alan Moore encontra Juvenal (Quis custodiet ipsos custodes?) e o Evera, pensava enquanto atravessava a rua – novamente bonita, atravessada, de um lado, pela luz vermelha, de outro, pela luz verde, que se revezavam e davam algum charme à exaustão do dia a dia em que temos vivido nos últimos anos.
“Durante toda a minha vida, eu nem sabia se eu existia de verdade, mas eu existo e as pessoas estão começando a perceber”, diz o Coringa. O receio geral é de que talvez a sociedade só comece a perceber quando for tarde demais.
Fabiano Calixto
Inverno de 2019