Como viver a morte – Por Marilia Kubota
Na coluna quizenal “Outras faces”, Marilia Kubota publica resenhas jornalísticas sobre obras de autoras e autores independentes e da grande literatura, destacando escritos de mulheres não-brancas e de autoras e autores da diversidade étnica e sexual. Desta vez, o livro resenhado é Alguém pra segurar a minha mão (Penalux, 2020) de Giovana Damaceno.
Marilia Kubota é poeta e jornalista, nascida no Paraná. Autora dos livros de poesia Diário da vertigem (Patuá, 2015), micropolis (Lumme, 2014) e Esperando as Bárbaras (Blanche, 2012) e organizadora das antologias Um girassol nos teus cabelos – poemas para Marielle Franco (Quintal, 2018), Blasfêmeas: Mulheres de palavra (Casa Verde, 2016) e Retratos japoneses no Brasil (Annablume, 2010). É Mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná. Em 2020, lança seu primeiro livro de crônicas, Eu também sou brasileira, pela Editora Lavra.
A imagem destacada na coluna é de autoria de Carlos Dala Stella.
***
Como viver a morte
Alguém pra segurar a minha mão, de Giovana Damaceno, (Penalux, 2020) é um livro reportagem sobre cuidados paliativos. O que são cuidados paliativos ? São serviços médicos prestados para pacientes em estágio grave de doença ou terminais.
A jornalista acompanhou, durante dois anos e meio, o trabalho do Serviço de Atendimento Domiciliar, ligado à Secretaria Municipal de Saúde de Volta Redonda. Com a equipe do médico José Antônio Pereira Fernandes, assistiu os últimos dias de pessoas que vivenciam a experiência da morte.
É possível viver com tranquilidade o dia da morte ? Médicos especializados em cuidados paliativos dizem que sim. Os relatos documentados pela jornalista também afirmam que é possível ter uma boa morte. E o que é uma boa morte ? É a permissão de, constatada a doença terminal, não prolongar o sofrimento do paciente.
É o retorno à humanização do ritual da finitude. Com o uso crescente da tecnologia, a morte em hospital se tornou um fato comum. Pacientes terminais e seus familiares se vêem às voltas com uma rotina exaustiva de exames, linguagem técnica e, principalmente, frieza de tratamento da equipe hospitalar.
Os programas de Atenção Domiciliar têm como eixo central a desospitalização, transferindo os cuidados para a casa do paciente. Levar a equipe médica para a casa do doente grave ou terminal o diminui o risco de infecções . E também oferece apoio à família, instituindo a função de cuidador, que pode ser um familiar, vizinho ou amigo.
Este tipo de tratamento começou em 1967, na Inglaterra. No Brasil, chegou em 1980 e se expandiu em 1997. Mas a terapia não é nova. Já na Idade Média, hospedaria e monastérios recebiam e acolhiam doentes, moribundos, pobres, famintos, órfãos, leprosos e até mulheres em trabalho de parto. Até então, a morte era vivenciada pela família, e até pelo paciente, que conhecia sua verdadeira condição e podia escolher como queria encerrar seus dias.
“O nascimento e morte eram acontecimentos públicos dentro de uma comunidade; havia envolvimento dos familiares e amigos no término da vida de um ente; estar na presença de pessoas a quem se amava e confiava era reconfortante para os que estavam prestes a partir. Não seria, com certeza, uma experiência tranquila, sem angústia; o sofrimento é inerente ao ser e a perda sempre gera dor.” (pág. 25)
Tudo mudou a partir do século XIX, com a medicina científica. Com o paciente sob controle dos médicos, os hospitais se tornaram espaços de segregação e exclusão. Com o avanço da medicina, o prolongamento da vida se tornou rotina e a manifestação de sofrimento (como doença) no ambiente doméstico se tornou rara.
A partir dos anos 60, a morte em hospital começou a ser questionada. A enfermeira Cecily Sanders fundou o primeiro hospice, instituição voltada a cuidados paliativos, na Inglaterra. O propósito da internação no hospice é que a pessoa tivesse conhecimento e controle de sua condição, que pudesse fazer escolhas, tomar decisões, resolver pendências materiais e emocionais.
Este tipo de orientação muda bastante o ritual de morrer. O tratamento humanizado permite que os doentes não sejam apenas um número em um leito, mas uma pessoa, com nome, família, casa, desejos.
O médico José Antônio relata que, uma vez, teve que substituir um colega que atendia pacientes com hanseníase, num posto de saúde. Ele pegou a ficha de um paciente, chamou pelo nome, cumprimentou tratando pelo nome, esperou ele entrar e depois entrou. O paciente entrou e depois que o José fechou a porta, começou a chorar: ” ninguém nunca apertou a minha mão depois da doença, nem na família, nem médico. Médico, aliás, nunca me olhou nos olhos.”
Esta é a diferença fundamental entre o tratamento humanizado e aquele que considera o doente apenas mais um. Com discrição e precisão, Giovana Damaceno conta como a equipe de José acompanhou os finais de vida de Marina, Amélia, Jaime, Esther. Alguém para segurar a minha mão é uma reflexão sobre a necessidade de resgatar a humanidade diante de um momento de vulnerabilidade física e emocional.