Copa do Mundo – “Ida” (Polônia) – Por Wuldson Marcelo
Ida. Direção: Paweł Pawlikowski. País de Origem: Polônia, 2013.
A fotografia em preto e branco de Ida, filme polonês laureado com a estatueta de Melhor Filme Estrangeiro na edição de número 87 do Oscar, é arrebatadora, de uma plasticidade quase sufocante. Isso porque nos dá a dimensão da importância da história que conta e da História. Os espaços vazios, os close-ups e os planos abertos se alternam para revelar um road movie em que a existência é confrontada constantemente pelos lastros do passado e pelas expectativas de futuro. Os fotógrafos Lukasz Zal e Ryszard Lenczewski são minuciosos, não obstante, a câmera estática revela o necessário, contrabalanceando luz natural e sombras.
E a fotografia é essencial na apresentação das duas mulheres que movem a trama de Ida. Os enquadramentos provocam a sensação de claustrofobia, cingindo um limite a elas. A jovem noviça Anna (Agata Trzebuchowska) está prestes a completar 18 anos e fazer seus votos de castidade. Antes do aguardado dia, a madre superior ordena a ela que deixe o convento e visite uma tia, Wanda Gruz (Agata Kulesza), que até então Anna nem sabia existir. Wanda é uma juíza que nos tempos de caça aos inimigos do Estado, do partido comunista polonês, no pós-Guerra, era conhecida por ser implacável.
A reunião de família, inicialmente, é de estranhamento e deboche de Wanda à fé cristã de Anna. Menos crueldade gratuita que assinalação da ironia da situação, pois, em seguida, Wanda revela a sobrinha (filha de sua irmã, vítima do Holocausto) que a sua origem é judia, o seu verdadeiro nome é Ida e que os pais foram mortos durante à invasão alemã a Polônia na Segunda Guerra. À presença de Ida, não passam impunes os dissabores pretéritos que atormentam Wanda. Tanto ela quanto a sobrinha decidem descobrir a verdade sobre o destino dos parentes. E é na fronteira entre passado (reminiscências e horror histórico, com a guerra a berrar suas atrocidades) e presente (de incertezas em um país comandado por um regime austero) que se dará a viagem dessas mulheres ao interior da Polônia, no início dos anos 1960, em busca dos restos mortais dos pais de Ida e de seu suposto irmão (a localização do túmulo deles).
É na estrada e seus acontecimentos que Ida revela o seu valor, a de ser uma obra simples e profunda em que a alma humana é atravessada por um senso existencial e um sentido histórico.
As vilas pelas quais passam carregam a marca do abandono, são lugares vazios, praticamente perdidos no tempo, com pessoas desconfiadas, em que a arte – o vitral feito pela mãe de Ida para um celeiro se deteriora sem testemunhas, ignorado – parece não mais capaz de brotar. O complexo passado político da Polônia arruína esses locais, abate sua vivacidade. O colaboracionismo polaco – um dos maiores paradoxos do Holocausto – e os atos do Partido surgem como tormentos a esconder (contraditoriamente, à vista) as feridas que sangram, recusando-se a cicatrizar.
E é no silêncio e no não dito que a narrativa ganha força. A elegância cruel de Wanda e a convicção inexorável de Ida começam a ceder a essa ligação (ao mesmo tempo que se intensificam os conflitos internos) e as diferenças se amenizam, elas começam a se conhecer e a relação toma à direção do reconhecimento. Wanda é um rio represado, de dores sufocadas pelo álcool e pelo sexo (que guarda um segredo, o peso de uma escolha), e Ida, por baixo de toda camada e fachada, tem curiosidades que a concentração consegue afastar.
Autodestruição e legado. Ida é um filme sobre a História e uma obra sobre vidas e suas vivências. E esse é um dos principais méritos do longa-metragem de Paweł Pawlikowski, os efeitos do campo de extermínio na alma de familiares (ou de quem sobreviveu) e como reconstruir o que resta. O tom seco e sincero nos aproxima de Wanda e Ida na busca pelo que perderam. E Agata Kulesza e Agata Trzebuchowska são extraordinárias. Kulesza revela a tristeza de Wanda, mas conectada a fortaleza de quem ocupou seu lugar no mundo apesar dos pesares. Mesmo o gesto derradeiro de Wanda (que terá um efeito determinante sobre Ida), ao som de Mozart, fruto das respostas encontradas, carrega a marca de quem precisa usar uma armadura para não ser engolida pelo abismo. Wanda chega ao seu limite. Já a Ida de Agata Trzebuchowska é expressiva, olhos e corpo respondendo às descobertas com as quais a jovem noviça se depara. Há inocência, há maturidade, eles caminham lado a lado, afastando a fragilidade desesperadora que geralmente invade personagens que precisam lidar com o peso de uma verdade insustentável. São atuações agudas, brilhantes.
Ida é um filme que não traz respostas aos assombros da História. Os fantasmas que nos acompanham, devorando, interrogando, implacáveis, presentes. Avançar é preciso. Mas como avançar, eis a questão. No fim, o rosto de Ida (a câmera, enfim, em movimento), retornando ao convento ou partindo em definitivo, é uma incógnita, com uma estrada à frente.