Copa do Mundo – “Jauja” (Argentina) – Por Valdecy Azambuja
Jauja. Direção: Lisandro Alonso. Países de Origem: Argentina / Dinamarca / França / México / EUA / Alemanha / Brasil / Holanda
Como indica a absurdamente longa lista de nomes de países acima, os filmes do argentino Lisandro Alonso estão se tornando cada vez mais globais em suas redes de apoio e créditos de produção – incluindo a brasileira RT Features, de Rodrigo Teixeira –, mesmo que permaneçam consistentes e, principalmente, locais em seus cenários e no âmbito das narrativas. Não que o cinema de Alonso tenha sido especialmente provinciano – ele tem recebido financiamento internacional desde seu segundo longa, Os Mortos (2004). Mas com Jauja, Alonso segue a órbita cada vez maior que seus filmes vêm traçando, afastando ainda mais suas preocupações de uma marca registrada do seu cinema dito como amplamente observador e vagamente romântico pelo seu trabalho anterior, em algo consideravelmente mais expansivo, divertido, até mesmo sobrenatural.
Cada um dos filmes de Alonso até agora narrou algum tipo de jornada e, ao mapear essas rotas de um filme para outro, encontramos uma progressão distinta. Seus dois primeiros filmes traçam caminhos bastante simples: A Liberdade (2001) passa por um trajeto apertado do deserto, por uma aldeia e de volta à terra natal do sujeito; Os Mortos (2004) se trata de uma longa viagem de volta para casa, seguindo, languidamente, ao longo do rio e, profundamente, em um território inexplorado. Depois desse filme, as cartografias de Alonso se tornaram mais fraturadas. Fantasma (2006) é um filme, sobretudo, interior, que transforma os corredores e escadarias do Teatro San Martín de Buenos Aires em um labirinto. E enquanto o último filme de Alonso antes de Jauja, Liverpool (2008), ocorre em grande parte fora novamente, sua trajetória é ainda mais oblíqua, conectando o casco de um navio de contêineres, as paisagens nevadas da Terra do Fogo e o pequeno aglomerado social de uma aldeia remota. A inovação formal em Jauja parece ter fornecido a Alonso um itinerário para a jornada à frente: nem circular nem linear, a estrutura de Liverpool era tangencial, em forma de Y, arrastando um personagem por uma hora e depois desviando para a narrativa de outro. Até mesmo seu título – sutilmente estampado em um chaveiro, uma lembrança banal, mas importante – sugere uma nova direção para os filmes de Alonso, que aponta para além de suas preocupações por um realismo brutal sobre o homem, a natureza e a duração do tempo.
O caminho traçado por Jauja embaralha essas linhas – e as expectativas do público – totalmente, seguindo uma lógica que parece nova no cinema de Alonso. Aqui, seu estilo abre espaço para mais elementos, incluindo um ator de Hollywood, trajes de época, uma pequena comédia e até insinuações do sobrenatural. A esse respeito, embora o filme essencialmente reproduza a montagem homem-natureza de seus trabalhos anteriores, seus únicos verdadeiros precursores são aqueles momentos breves e estonteantes em A Liberdade e Os Mortos nos quais a câmera levanta voo, perdendo sua base, um borrão de movimento que parece ao mesmo tempo alinhado com a subjetividade e desencarnado do protagonista, além do humano. O fato de Alonso conseguir isso com uma câmera inabalável e estacionária (graças ao diretor de fotografia Timo Salminen, parceiro frequente de Aki Kaurismäki,) torna Jauja ainda mais notável e curioso em sua filmografia, que reavalia criticamente seus filmes anteriores e os transpõem para o registro do mito.
Baseado em um roteiro de vinte páginas escrito pelo poeta, jornalista e romancista Fabián Casas, o filme começa com uma epígrafe explicando, ainda que de forma inútil, seu título: Jauja, nos dizem, é uma terra mitológica de “abundância e felicidade”. Uma espécie de El Dorado cuja localização obscura e riquezas lendárias os colonos europeus procuravam em vão. Pode ou não ser útil saber que Jauja é, de fato, uma cidade real no Peru, que seu clima hospitaleiro serviu como uma espécie de Terra de Cocanha (país de Jauja, que correspondia à tradição popular flamenga sendo representada pelo pintor Pieter Brueghel) para os conquistadores espanhóis que apareceram lá no século XVI, ou que também foi o cenário para As Aventuras de Tintim: Os Prisioneiros do Sol (1969). Também poderia estar dizendo que, de acordo com Alonso, era um lugar mencionado pela estrela do filme, produtor e compositor Viggo Mortensen quando a produção ainda estava buscando um nome para o título há tempo de sua estreia em Cannes. Seja qual for o seu significado, Jauja é um lugar puramente imaginário, um estado de espírito e, em breve, como o filme sugere, a localização de um conto de fadas.
Mas isso não é imediatamente aparente: no início, a localização do filme é incrivelmente bela e historicamente familiar. Filmado no norte da Patagônia e ambientado no final do século XIX, Jauja rapidamente esboça um lugar e tempo em meio à grande e genial Campanha do Deserto, orquestrada pelo general Julio Argentino Roca para domar o deserto argentino. Aqui encontramos o personagem de Mortensen, o capitão Gunnar Dinesen, um soldado dinamarquês e explorador de uma variedade indeterminada, que se aventurou em campo com sua filha de 15 anos, Ingeborg (Viilbjørk Malling Agger), em um inexplicável empreendimento de expedições e negócios. Apesar da grande paisagem – um litoral azul e um matagal de prata e ouro, paisagem meio-lunar, meio-inglesa, com seus arbustos salpicados e rochas cobertas por líquens –, Dinesen e sua filha parecem enfaticamente perplexos, até mesmo um pouco entediados, e ao mesmo tempo, no início do filme, discutem a possibilidade de conseguirem um cão na volta à Dinamarca. Sentindo-se claramente fora de lugar, os dois parecem estar passando os últimos dias de sua viagem com poucas opções para diverti-los e (aparentemente) sem almas amigáveis entre a tropa de soldados que os seguiram. Para tornar as coisas mais inóspitas, essa tripulação – mencionada com mais frequência do que realmente se vê – é comandada por Pittaluga (Adrián Fondari), comicamente desagradável, que primeiramente encontramos em uma piscina de marés, e que formalmente solicita a Dinesen um encontro com sua filha. Chocado, Dinesen avisa Ingeborg para ficar longe dos moradores locais, com alguma suspeita que ela já tenha feito amizade com o assistente de Pittaluga, Corto (Diengo Roman), de barba ruiva e peluda, com quem ela logo foge pelas traiçoeiras estepes patagônicas.
Isso inicia a ação central do filme: o rastreamento de Ingeborg por Dinesen através do deserto, uma tarefa que ele empreende sozinho, apesar dos avisos de Pittaluga. Com suas imagens românticas e as raízes escandinavas de seu protagonista, o filme é curiosamente reminiscente das aventuras silenciosas de Victor Sjöström, como Terje Vigen (1917) e The Outlaw and His Wife (1918) – histórias de uma masculinidade solitária contra a ferocidade da natureza. A contribuição de Mortensen é considerável e surpreendente, não apenas em seu famoso multilinguismo (ele é fluente em espanhol e dinamarquês, que, em Jauja, fala em um tom levemente fleumático de exasperação paternal e inconveniência burguesa), mas com sua fisicalidade um tanto desajeitada, com que cambaleia pelo sertão argentino em um traje deselegante com casaco regimental pesado, botas de montaria de couro até os joelhos, pashmina de ouro no pescoço e balançando seu sabre.
Fica claro, quando as referências cinematográficas surgem, que o filme parece estar em dívida com Rastros de Ódio (1956), de John Ford, especialmente quando se torna evidente que Ingeborg caiu nas mãos dos Querandís locais – ou “cabeças de coco”, como Pittaluga os chama. Para a frágil proposta de Dinesen (Viggo Mortensen) a respeito da compreensão intercultural entre europeus e selvagens, Pittaluga responde: “Não precisamos entendê-los. Precisamos matá-los.” Para enraizar ainda mais o filme no contexto de colonização e conquista, Alonso oferece um diálogo sugestivo sobre um certo Zuluaga, um líder militar parecido com Kurtz (interpretado por John Malkovich em A Maldição da Selva de 1993), que foi nativo e pode estar vagando pelo deserto vestido de mulher, entre imagens de totens primitivos e os restos de um ritual de sacrifício.
Apesar dessas dicas, incluindo um vislumbre de Misael Saavedra, que atuou como lenhador em A Liberdade, transformado agora em guerreiro indígena, as sugestões de história colonial de Alonso são leves, possivelmente sendo pistas falsas. O mesmo pode ser dito da característica estilística mais evidente do filme: sua proporção quadrática de 4:3 (em si uma rejeição dos panoramas ao Cinemascope de Rastos de Ódio) com os cantos arredondados que lembram uma fotografia do final do século XIX. Esse enquadramento incomum – bordas chanfradas que, para fotografias, permitiam que fossem mais facilmente inseridas em uma capa ou álbum – reforça ainda mais o timbre dos contos de fadas do filme, e sua cor vívida quase lembra o tingimento de um velho lambril: as calças vermelhas dos soldados, pedras verdes cobertas de musgos e o vestido cerúleo de Ingeborg. Jauja, então, remete timidamente para além da Hollywood clássica ou do cinema mudo, e de atrações pré-cinematográficas, como a panorâmica e a fotografia da paisagem inicial.
Mesmo assim, Alonso usa essas referências mais para desestabilizar o filme do que para reforçar sua representação romântica do homem e da natureza. Da mesma forma, enquanto a câmera de Salminen tende a enquadrar Mortensen isolado contra a paisagem, também o engole cada vez mais (“O deserto devora qualquer coisa”, diz Pittaluga a Dinesen). Aos poucos, Jauja mergulha em uma zona alucinatória e não heroica, perdendo qualquer lógica direcional consistente, assim como Dinesen perde sua orientação. E na trilha sonora, um ambiente implacável de vento, junco e zumbido de inseto é apenas ocasionalmente complementado por algumas reflexões interestrísticas de piano-mellotron (compostas por Mortensen junto com o guitarrista americano Buckethead, seu colaborador em nada menos que dez de seus dezessete álbuns). Essa consistência monótona cria um vazio significativo tonteante, fazendo com que ruídos repentinos feitos pelo homem – a erupção de tiros, o sangue-gorgolejo de um homem agonizante, o estalo do sabre de Dinesen em sua bainha – se destacam em oposição a uma paisagem sonora indiferente.
Com uma reviravolta no final do filme – uma porta se abre na narrativa tão maravilhosamente desconcertante para explicar (ou estragar) aqui –, finalmente fica claro que estamos no reino do mitológico. E as intenções ocultas de Alonso entram em foco também, sugerindo que o alinhamento anterior de seu cinema com tipos masculinos viris e taciturnos foi fundamentalmente suspenso, dando lugar a uma posição mais crítica, se não precisamente mais “feminina”. Aqui, como em vários exemplos nos filmes de Alonso, um objeto inócuo se mostra ricamente simbólico: um soldado de madeira encontrado em estado selvagem, perdido, abandonado e totalmente deslocado, serve não só como uma lembrança curiosa de um mundo recordado, mas como um elo entre pessoas, espaços e tempos, muito parecido com o pequeno jogador de futebol de plástico em Os Mortos (que é um brinquedo de criança e um fac-símile de um arquétipo distintamente masculino que também é crucial). Alonso é frequentemente considerado não crítico em relação aos personagens masculinos de seu filme, mas Dinesen é quase tragicômico, um brinquedo de forças sobrenaturais.
Ou, talvez, o personagem masculino de Alonso mais banal? Afinal de contas, assim como Liverpool se torna aparentemente entediante com seu protagonista masculino e nos vira sua atenção para sua filha, Jauja pode muito bem ser mais sobre Ingeborg do que seu pai um tanto desajeitado, apesar do carisma de Viggo. Jogado com uma complexidade silenciosa por Viilbjork Mallin Agger, Ingeborg pode ter consideravelmente mais controle sobre a narrativa do que seu pedido provocante por um filhote de cachorro pode sugerir, uma possibilidade insinuada logo no início de seu desejo ousado por um jovem desajeitado com quem ela nem sequer compartilha o mesmo idioma. O que parece ser a fórmula da donzela clássica em perigo – ou, pior ainda, a donzela em perigo de ser atacada por selvagens –, finalmente dá lugar a uma nova história, o filme propõe uma velocidade de escape feminina diferente das narrativas conduzidas pelos personagens homens de Alonso. A esse respeito, há muitas maneiras de se levar a última pergunta do filme: “O que é que faz uma vida funcionar e seguir em frente?” Enquanto Dinesen perambula pela romântica paisagem argentina, Ingeborg percorre um terreno completamente diferente, apostando em um novo território, e talvez para Alonso, apontando o caminho a seguir.
*Valdecy Azambuja. Corintiano apaixonado por cinema. Cineasta independente, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Sísifo (2014), Risos na Madrugada (2015) e Alheio (em pós-produção). Contato: azambujavaldecy@gmail.com