Copa do Mundo – “Julieta” (Espanha) – Por Valdecy Azambuja
Julieta. Direção: Pedro Almodóvar. País de Origem: Espanha, 2016.
Quando Pedro Almodóvar inicialmente concebeu seu vigésimo longa-metragem, Julieta, desejava Meryl Streep no papel da protagonista em três fases diferentes de sua vida (aos 20, 40 e 60 anos). Eventualmente, Almodóvar decidiu voltar para a Espanha e realizar a obra em sua língua nativa, com medo de filmar fora da sua zona geográfica e linguística de conforto. Se a colaboração tivesse sido concretizada, talvez fosse uma injeção de ânimo muito necessária para dois grandes artistas que se estabilizaram nos últimos anos. Na verdade, a queixa padrão sobre esse capítulo da carreira de Almodóvar lembra o que às vezes é dito sobre Streep: ele parece ter se tornado avesso ao risco, levado pela aceitação crítica e popular, e seus filmes se tornaram mais mansos e gentis em decorrência disso.
O coro crítico comum a Almodóvar é de que ele seria dois cineastas diferentes. Em algumas ocasiões, é o maluco lunático com amplas inclinações cômicas. Em outras, é o homem que extrai a vida interior das mulheres por intermédio do melodrama, como muitos dos obsessivos estrogênicos do cinema antes dele (Cukor, Sirk e Fassbinder). Em Julieta, essas duas linhas concorrentes se reconciliam, assim como em Tudo sobre Minha Mãe (1999). No entanto, sua produção na década, Volver (2006), Abraços Partidos (2009), A Pele Que Habito (2011) e Os Amantes Passageiros (2013), não teve a carga e a espontaneidade de seus melhores trabalhos. Mas Julieta o acordou desse recente estupor.
Assim como em Tudo Sobre Minha Mãe, Julieta traz uma mãe enlutada, interpretada por duas mulheres em fases distintas de sua vida: em seus quarenta anos por Emma Suárez, e aos vinte anos por Adriana Ugarte. Conhecemos Julieta quando ela é abandonada pela filha. Por doze anos, a protagonista não vê sua filha, Antia (Priscilla Delgado quando adolescente e, na vida adulta, por Blanca Parés), passando esses anos intervenientes lutando contra a depressão. No momento em que se muda para Portugal, vinda da Espanha, com o seu namorado, Lorenzo (Darío Grandinetti), encontra-se por acaso com Bea (Michelle Jenner), uma amiga de infância de Antia. Bea avisa a Julieta que Antia está morando no lago com seus três filhos, uma revelação que leva Julieta a uma confusão emocional. Julieta então abandona seus planos iniciais de ir para Portugal e retorna ao prédio onde Antia nasceu, e começa a revisitar o tempo da concepção de sua filha. Através de uma carta sem remetente que escreve, passa o filme peneirando o trabalho penoso de seu passado para entender seus erros.
Voltamos a 1989, quando Julieta está em um trem noturno. Aqui, ela é interpretada por Ugarte, de cabelos espetados usando gola rolê azul e grandes brincos vermelhos. Julieta, de Ugarte, parece uma mulher completamente diferente de Suárez (mais impulsiva, desenfreada, apaixonada). Ela está entretendo as meditações portentosas de seu companheiro de trem mais velho, mas fica entediada com ele, interpretando mal seus pedidos de ajuda como avanços sexuais. Assustada, deixa o compartimento de assentos compartilhado e vai para o vagão-restaurante, onde encontra um pescador galego incrivelmente bonito, Xoan (Daniel Grao), cuja esposa está em coma há anos.
A jornada é marcada por uma tragédia pela qual Julieta não pode deixar de assumir um pouco de responsabilidade – o trem para; o homem com quem Julieta acabara de sair suicida-se saltando de um dos vagões. Para aliviar suas tristezas, Julieta e Xoan fazem sexo no trem, e esse encontro casual gera uma filha, Antia. Depois que a esposa de Xoan morre, eles se casam, mas a culpa desse episódio prevê uma tragédia maior que se inicia mais tarde em seu casamento, culminando com Antia abandonando sua mãe ao atingir a idade adulta.
Como em Volver, outro filme de Almodóvar baseado no distanciamento entre mãe e filha, a narrativa de Julieta é labiríntica, repleta de reviravoltas repentinas que reformulam os acontecimentos já vistos sob uma luz mais urgente. Tais revelações dão aos anteriores gestos descartados maior peso e significado. Na verdade, a obra é uma colagem de pontos que permanecem constantes durante toda a carreira de Almodóvar – uma mãe à procura de seu filho (Tudo sobre Minha Mãe), a relação mãe-filha interrompida pelo abandono (Volver), até mesmo uma esposa em coma (Fale com Ela, 2002) –, mas há menos excesso emocional do que em qualquer um desses filmes, incluindo o comparativamente austero Fale com Ela. Isso sinaliza uma mudança para Almodóvar. “Lutei muito com as lágrimas das atrizes, contra a necessidade física de chorar”, disse o cineasta ao El País, em março de 2016. “O que eu queria era desânimo – a coisa que fica dentro depois de anos e anos de dor”.
A sobriedade de Almodóvar em Julieta condiz com sua improvável fonte inspiradora – três contos de A fugitiva da escritora canadense Alice Munro, detentora do Prêmio Nobel de Literatura em 2013. À primeira vista, os dois artistas possuem sensibilidades discordantes, o mau humor melancólico de Munro é aparentemente incompatível com a loucura de Almodóvar.
Os filmes mais recentes de Almodóvar pareciam desejosos dessa sobriedade. Mesmo assim, Julieta tem mais ritmo do que qualquer outra coisa que o cineasta espanhol fez na última década, o sucesso do filme está principalmente na forma como é estruturado, tendo um fluxo de duas mãos entre suas atrizes. Os críticos costumam falar do fascínio de Almodóvar pelas mulheres, mas essa imagem da mulher tende a gravitar em torno de certas musas (Carmen Maura, Victoria Abril, Marisa Paredes, Penélope Cruz). Em Abraços Partidos, sua mais recente parceria com Penélope, uma das suas companheiras mais rotineiras, soou como se a colaboração tivesse esgotado seu potencial. Almodóvar não havia trabalhado com Suárez nem com Ugarte antes, e por isso o filme tem aparência de novidade, como se Almodóvar estivesse trabalhando em um registro desconhecido. Em Julieta, elas têm atuações bem diferentes, um fato que se torna cada vez mais evidente pelos close-ups extremos característicos de Almodóvar. Ugarte tem grandes olhos vivos que comunicam um contínuo estado de alerta, enquanto Suárez parece taciturna a partir do minuto em que a encontramos.
Ugarte é habilidosa em sugerir que a Julieta com a qual nos deparamos naquele trem, um dia, será a mulher retraída interpretada por Suárez. Enquanto o filme continua, a linguagem corporal de Ugarte se torna mais volumosa até chegar, mais à frente, a um estado de catatonia. Isso culmina na sequência balética em que Antia está esfregando o cabelo da mãe depois de um banho. A cabeça de Ugarte desaparece embaixo da toalha e em seguida o rosto de Suárez surge vibrante como a mulher jovem que conhecíamos antes. Ugarte já havia externalizado o trauma de Julieta tão habilmente que a transição entre as duas atrizes é perfeita.
É através dessas duas mulheres, e da maneira como Almodóvar as dirige, que percebemos o que o próprio espanhol chama de “cinema de mulheres”, característica mais presente em Julieta que nas películas mais recentes. O mais próximo que ele chegou a isso em seus últimos trabalhos foi com Cecilia Roth em Tudo sobre Minha Mãe, em que a atriz argentina alcança uma performance desprovida de histrionismo e exagero, mesmo em volta do caos que circunda sua personagem. Ela é um centro de gravidade silencioso, e o filme obtém grande parte de seu poder tendo Roth como sua âncora – uma mãe ansiando por seu filho, um sentimento de perda que a personagem Julieta também constrói.
A pequena estória sobre a possibilidade de Meryl Streep e o cineasta espanhol trabalharem juntos, sem dúvida nenhuma, apoiaria a tese popular de que Almodóvar, com quase 69 anos de idade, envelheceu como fazedor de um cinema legítimo, como se o cineasta antes destemido estivesse agora paralisado pelo medo de ampliar seus horizontes. Mas em Julieta, ele trabalha numa grande tela de pintura com suas cores e texturas maravilhosas sem sacrificar o intimismo e a sensibilidade do seu olhar. Falar desse filme como uma pequena introdução à filmografia de Almodóvar seria uma afronta a sua genialidade, ele é um dos poucos cineastas que podem explicar a dor de uma mulher sem banalizá-la. Em Julieta, Almodóvar trabalha com esta temática, mas o faz com rostos desconhecidos. Ugarte e Suárez conseguem convencer o lado mais atento e observador que habita o espanhol, dando ao seu cinema o impulso de energia necessário para se reinventar.
*Valdecy Azambuja. Corintiano apaixonado por cinema. Cineasta independente, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Sísifo (2014), Risos na Madrugada (2015) e Alheio (em pós-produção). Contato: azambujavaldecy@gmail.com