Copa do Mundo – “Luz de Inverno” (Suécia) – Por Gina Trigueiro
Luz de Inverno. Direção: Ingmar Bergman. País de Origem: Suécia, 1963.
“Não desprenderei minha mão da Sua até que não me abençoe”.
As badaladas do sino da igreja comunicam, transmitem algo muito bom ou muito ruim. Há muito tempo, nas pequenas cidades do interior, era o sino dos templos que informava a morte, nascimento, casamento, as horas. Alguns bispos explicam que as badaladas do sino simbolizam a voz de Deus chamando as pessoas para a oração.
Luz de Inverno ou Os Comungantes inicia-se com 15 badaladas, e sua narrativa se desenvolve em uma área rural sueca, acompanhando alguns dias na vida do pastor Thomas Ericsson (Gunnar Björnstrand). Algo a se destacar é que não há luz do sol nas imagens, toda a filmagem foi realizada com o tempo nublado ou nevoeiro, durante o inverno sueco, como afirmou Ingmar Bergman numa entrevista. Podemos sentir que a atmosfera do cenário é do vazio, do frio, da existência e da fé em crise. Interpreto que a vida de Thomas é melancólica, mas uma forma de melancolia religiosa. Bergman, neste sentido, é muito parecido com o seu personagem, talvez o pastor seja seu alter ego, pois demonstra seus conflitos e angústias religiosas.
A melancolia como doença emerge como fruto da teoria hipocrática dos humores, mas o seu sentimento já era descrito anteriormente a Hipócrates. O humor é uma espécie de fluído vital que percorre o corpo e molda a alma. O humor melancólico é a bile negra. Segundo Hipócrates, todos os homens têm em si uma dose do humor melancólico, no entanto, a doença aparece quando a bile negra prepondera sobre os demais humores – colérico, fleumático e sanguíneo. O historiador Jean Starobinski, em A Tinta da Melancolia, aponta para a melancolia descrita e sentida antes da sua explicação médica, ao citar versos de Homero que captam a miséria do melancólico – no caso, Belerofonte:
“Objeto de ódio para os deuses,
Ele vagava só na planície de Aleia
O coração devorado de tristeza, evitando os vestígios dos homens”.
No mundo homérico, afirma Starobinski, tudo se passa como se a comunicação do homem com os seus semelhantes e a retidão do seu caminho precisassem de uma garantia divina. Quando esse favor é recusado pelos deuses, o homem é condenado à solidão, à tristeza devorante e às corridas errantes da ansiedade. Para se libertar de sua profunda tristeza, o melancólico precisa esperar ou se conciliar com o retorno da benevolência divina. É preciso que uma divindade lhe devolva a indulgência de que foi destituído. É preciso que cesse essa situação de abandono. Portanto, Homero nos oferece uma figura mítica da melancolia em que o infortúnio do homem resulta de sua desgraça diante dos deuses. Vejo na vida do pastor Ericsson uma grande semelhança com a do herói homérico. Sua vida se desenrola sem contato social, sem amor, à espera de um sinal de Deus, de uma mensagem de amor divino. O pastor se torna um amargurado cumpridor de seus deveres.
A película tem seu inicio, e quase todo o seu desenrolar, no interior de uma igreja. O close no rosto de Ericsson nos mostra um olhar de dúvidas e de sofrimento, e a escultura de um Jesus Cristo com os olhos arregalados e assustados nos faz pensar no abandono de Deus. A sequência pelos rostos de Marta (Ingrid Thulin) e do casal Persson (Max von Sydow e Gunnel Lindblom) transmite, além dos sentimentos de dúvidas e sofrimento, incredulidade.
Na conversa entre o pastor e o Sr. Persson, o homem revela que houve um tempo em que ele e Deus viviam juntos, que, ignorando a realidade, depositou sua fé numa improvável imagem de um Deus paternal, com a qual ainda tenta se agarrar, mas quando confronta a O Ser Supremo, na realidade que experiencia, nota um monstro, um deus aracnídeo. Por que Deus não intervém nos sofrimentos humanos, nas suas aflições? Se não existisse Deus, faria alguma diferença? Desta forma, a vida faria sentido. O sofrimento é incompreensível, logo não precisa de explicação. São essas questões que permeiam a conversa entre os personagens. Na verdade, não há um diálogo, mas um monólogo de Tomas.
Os sinos tocam, mas o que sentimos é o silêncio de Deus. Não há sinal de Deus. Entendo Luz de Inverno como uma representação de uma melancolia religiosa; Tomas tem a impressão de que está cada vez mais distante de Deus. Por isso sofre, angustia-se e se questiona se Ele realmente existe. Assim como o herói de Homero, o pastor Ericsson necessita de um sinal de Deus, precisa se libertar da sua escuridão através de uma demonstração divina.
* Gina Trigueiro é graduada em Filosofia pela UFMT, mestranda em Antropologia Social também pela UFMT, mãe de Alicia e admiradora do cinema nacional.