Copa do Mundo – “O Amante Duplo” (França) – Por Aline Wendpap
O Amante Duplo. Direção: François Ozon. País de Origem: França, 2017.
Psicanálise, Semiótica, Surrealismo, Constelação Familiar, Freud, Jung, Lacan, Salvador Dali, Luís Buñel, Bert Hellinger, etc., qual linha de raciocínio ou pensador será apropriado para ajudar a compreender este filme? A resposta é incerta. No entanto, uma coisa é certa: a obra deixa muitas dúvidas. O que, aliás, é próprio também dos pensadores e das áreas citadas acima. Por outro lado, porque compreender? Por que essa mania de querer uma explicação? Por que racionalizar tudo? Ainda mais, quando a tela apresenta um filme que levanta pontos desditosos do inconsciente humano.
O intuito parece ser chocar, do início ao fim. Tanto, que um dos primeiros enquadramentos realizados é um plano detalhe do órgão genital feminino, que se transforma (sem qualquer razão aparente) no olho da protagonista. Mas, em se tratando de questões inconscientes, lógica não existe!
Assim como um analista faz em seu consultório, talvez o melhor caminho para começar a escrever sobre esta produção seja guiar-se a partir das pistas oferecidas pelo diretor, estas, aliás, são muitas, ao ponto de o crítico Bruno Carmelo afirmar em seu texto sobre o filme, que “Ozon se delicia no campo das sugestões visuais”. Tendo o processo analítico como metáfora e plano de fundo, François Ozon nos oferece ganchos, nos quais talvez possamos nos apoiar, na caminhada em busca do que Nicole Brenez chama de lógica figurativa do filme.
As formas geométricas são alguns desses ganchos. E algumas opções revelam a predominância e magnitude dos círculos, todavia, quadrados, retângulos, bem como formas abstratas aparecem para fazer contraponto.
Os círculos são vistos desde os primeiros enquadramentos, como no plano detalhe dos olhos da protagonista (vivida por Marine Vacth), passando pela enorme espiral da escadaria que ela sobe para chegar ao consultório do seu primeiro analista (interpretado por Jérémie Renier), culminando com a arquitetura, também redonda do prédio do segundo analista (que é o duplo do título, também interpretado por Jérémie Renier). Como o jogo aqui é basicamente com a Psicanálise e/ou com as Teorias Analíticas devemos ter em mente que, nesta conjuntura, o círculo pode simbolizar, dentre outras coisas, a alma e o Si-Mesmo, o início e o fim da vida humana, já que em algumas culturas é o símbolo da meta a ser alcançada, da união dos opostos. O círculo é utilizado ainda para concentrar o que está dentro e excluir o que está fora. É a imagem símbolo de uma realidade psíquica interior do homem. Uma interpretação cinematográfica possível a partir disso é a de que somos convidados a adentrar o universo inconsciente da personagem Chloé, quando o plano detalhe nos defronta com suas pupilas. Uma vez lá, podemos usar as escadas espiraladas, que levam aos consultórios dos analistas, como rota de acesso aos conflitos da personagem e do filme.
Paralelo a este mergulho no campo do inconsciente temos algumas pinceladas de realidade, por exemplo, quando Chloé entra nos consultórios e senta ao lado de mesinhas, com vasos quadrados de flores, pois que o quadrado é visto por alguns estudiosos como um símbolo da matéria, do corpo e da realidade terrena, o que é reforçado pelo seu gesto recorrente de pegar uma ‘pitada’ de terra nos vasos das plantas (como em A Origem, quando o personagem de Leonardo Di Caprio tinha que girar o pião para saber se estava sonhando ou acordado).
Apesar de o diretor discordar da visão que associa O Amante Duplo a Um Cão Andaluz, sua incursão pela órbita psicanalítica, tal como os exageros técnicos – perceptíveis pelos enquadramentos, sobreposições e fusões de imagens das pinturas com a realidade, que remetem o filme ao campo do absurdo -, permitem perfeitamente tal paralelo entre as obras, ainda que o filme de Buñel e Dalí esteja em um patamar de clássico, talvez insuperável.
Por fim, quero deixar claro que gostei do filme como obra cinematográfica, no entanto, não posso deixar de discordar de Ozon, quando ele diz (em entrevista concedida ao jornal Estadão) que em seu filme “o que se impõe é a visão feminina”. Porque o retrato que se pinta neste filme é de uma mulher histérica, frígida e ainda completamente dependente de um, ou no caso, de dois homens para “ser feliz” (já que antes de encontrá-los ela era apenas uma mulher solitária com muitas dores na barriga e um gato). Esta não deixa de ser uma visão ultrapassada da mulher, pois que, ainda no início do século XIX, Freud já tratava destas questões e desta mulher, todavia, de lá para cá, algumas coisas mudaram… Além disso, é paradoxal que um homem, que afirma sentir “um certo distanciamento” ao filmar mulheres, possa impor à cena uma visão feminina.
*Publicado originalmente por Aline Wendpap em http://sescmt.com.br/cinesesccritica/?p=27
**Aline Wendpap é doutora em Estudos de cultura contemporânea, crítica de cinema, mãe do Emanuel e apaixonada pelas artes.