Copa do Mundo – “O Babadook” (Austrália) – Por Valdecy Azambuja
O Babadook. Direção: Jennifer Kent. País de Origem: Austrália, 2014.
Não está claro se a diretora australiana Jennifer Kent quer continuar fazendo filmes de terror (Nightingale, em produção, trata-se mais de um filme violento que propriamente aterrorizante), mas, a julgar por seu terrível e comovente filme de estreia, O Babadook, é óbvio que o terror precisa dela. No que tem sido uma época bastante moribunda para o gênero, o filme de Kent se destaca pela escuridão iluminada por dentes e unhas que brilham. Como acontece com todos os grandes filmes sobrenaturais dessa linhagem, o terror não existe como uma entidade fora de seus personagens humanos, todavia, impõe-se como um meio metafórico para uma compreensão mais profunda deles. O Bebê de Rosemary não é sobre os meandros da impregnação satânica, mas as maneiras pelas quais os corpos das mulheres são socialmente cooptados. Os Invasores de Corpos (versão de 1978) se preocupa menos com os detalhes de uma misteriosa força alienígena que quer colonizar nosso planeta do que com impulso para a conformidade social que isso representa. O Babadook toma a forma de uma história um tanto convencional do bicho-papão, mas tem muito mais em jogo. Com essa assustadora e aparentemente simples história de um monstro de livros infantis chegando à vida, Kent penetra na paisagem mental de duas pessoas – uma mãe e um filho – lutando contra o atraso pós-trauma; é um estudo de caráter inteligentemente concebido e surpreendentemente comovente, que nunca sacrifica nenhum de seus sustos enquanto se agarra ao drama.
Para obter sucesso mergulhando nas profundezas enquanto também preserva a alta tensão da narrativa principal, a película de Kent exige uma protagonista que possa caminhar uma longa distância interior. Em breve poderemos acrescentar o nome Essie Davis à lista cada vez maior de performances comprometidas e emocionalmente complexas que não receberam elogios ou prêmios críticos porque se dignaram a ser apenas um filme de terror (como Deborah Kerr em Os Inocentes, Dee Wallace em Cujo, Alison Lohman em Arraste-Me para o Inferno – a lista continua e continua). Como Amelia, uma mãe solteira que está cuidando de seu filho, Samuel (Noah Wiseman), uma criança problemática cada vez mais violenta, Davis é submetida a um desafio. Seu personagem ainda está sofrendo com a morte acidental de seu marido – morto há sete anos antes – em um desastre de carro, enquanto os dois encaminhavam-se para o hospital para dar à luz Samuel. Quando o filme começa, Amelia é sacudida por um pesadelo (os tons conceberam uma protagonista inconscientemente perturbada como Nicole Kidman em Os Outros), embora ela esteja prestes a mergulhar em um muito maior, acordado. Kent estabelece rapidamente um ambiente doméstico cheio de ansiedade, claustrofóbico, expresso em espaços de cortes rápidos. Samuel é levado a proteger sua mãe dos monstros que ele lê em obras para crianças, como o Lobo Mau, no entanto, seus métodos para fazê-lo – como a construção de dispositivos destrutivos de catapulta – são compreensivelmente não apreciados, seja em casa, seja na escola. A intensidade infantil de Samuel não é apenas o comportamento dos meninos, mas o clamor para resolver problemas emocionais autônomos em casa, e o filme sugere uma resposta natural ao mundo perigoso fora daquela casa, um mundo que arrebatou seu pai, embora antes dele nascer.
As coisas pioram exponencialmente quando Amelia começa a ler para Samuel um misterioso livro de histórias que apareceu em sua prateleira, intitulado O Senhor Babadook. Envolvida em uma anônima encadernação vermelha de capa dura, e sem nenhum crédito nem indicação do autor, a assustadora história tem a lógica simples e a dinâmica de um livro infantil clássico (pense no grande monstro de Sésamo, The Monster at the End of This Book – que se assemelha ao Mau do Castelo Rá-Tim-Bum –, com sua construção, exigindo tensão), porém com uma abstração que causa desassossego. O livro em si, ilustrado por Alex Juhasz, é um triunfo do design de hélices; sua nefasta criatura título, um demônio inspirado pelo expressionista alemão com dedos e dentes afiados, é tão inquietante de ver e acompanhar que não podemos culpar o pequeno Samuel quando ele soluça compulsivamente ao chorar antes que Amélia possa terminar de lê-lo pela primeira vez. Como sabemos pelas imagens que nos recordamos desde a infância – na página e na tela, e às vezes na vida real –, o que é visto nunca pode ser invisível. E o Sr. Babadook prova ser inescapável. (“Se estiver em uma palavra ou em um livro, você não pode se livrar da Babadook”). No entanto, Kent não apenas cria uma história de um objeto amaldiçoado que se prende de inocentes a inocentes, à la Ringu (o original japonês que se tornou o remake estadunidense de sucesso O Chamado), em vez disso, trata-se de um filme sobre uma mãe e um filho forçados a lidar com seu trauma persistente, manifestado como um sombrio demônio de papelão, determinado a destruí-los, transformando-os um contra o outro. Em sua maior parte, O Babadook funciona como a sessão de terapia familiar mais assustadora de todas.
“Eu prometo te proteger se você prometer me proteger”, diz Samuel a sua mãe em determinado momento da trama. O filme é mais perturbador quando começa a trair o contrato básico, não escrito, entre pais e filhos. O que começa como uma história de “coisas que nos assustam na noite” – em que nós e os personagens constantemente nos perguntamos se a perturbação é real ou não – transforma-se em algo inesperadamente volátil. Quanto mais Amélia tenta “livrar-se do Babadook” (descartando, rasgando ou queimando o livro), mais ele fica dentro dela, convertendo-a gradualmente de protetor de Samuel a seu perseguidor instável, como Jack Nicholson no papel do farsante Jack Torrance em O Iluminado. Amelia é mesmo uma mãe “em sua essência”? Babadook é chamando para revelar a impotência de Amelia como mãe protetora ou para reafirmar sua força como tal? Calafrios se transformam em pancadas, quando a ameaça começa a emanar de dentro e se tornar concreta, física. O monstro finalmente elimina tudo, exceto mãe e filho que ficam sozinhos em um confronto cara-a-cara dentro de casa, no qual encontramos amor (inato, inescapável) e ódio (nascido do ressentimento, por afastar o marido) em suas formas mais puras.
O argumento da cineasta australiana é direto e claro: reprimindo a tragédia da morte de seu marido, anos antes, a protagonista permitiu que um monstro apodrecesse e crescesse em sua mente e de seu filho, e agora ele vai dominá-los e destruí-los completamente se ela não decidir confrontá-lo voltando a lutar. E ela luta, como no Grand Guignol da meia hora final do filme. Mas Jennifer Kent é esperta demais – e impiedosa demais para renegar sua premissa e promessa: mesmo que possa ser controlado, Babadook é uma fera que talvez não possa ser derrotada.
*Valdecy Azambuja. Corintiano apaixonado por cinema. Cineasta independente, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Sísifo (2014), Risos na Madrugada (2015) e Alheio (em pós-produção). Contato: azambujavaldecy@gmail.com