Copa do Mundo – “O Barco da Esperança” (Senegal) – Por Juliana Segóvia
O Barco da Esperança. Direção: Moussa Touré. País de Origem: Senegal, França, Alemanha, 2012.
O Barco da Esperança (La Pirogue), longa-metragem dirigido por Moussa Touré, lançado no ano de 2012, traz no nome uma relação direta com seu país de origem, o Senegal. A raiz etimológica da palavra Senegal decorre da expressão sunu gaal, pertencente à língua falada pelo grupo étnico Uolofes, e tem como significado “nossa canoa”. Senegal é um país banhado pelo oceano atlântico e entrecortado por rios que nomeiam cidades, como a capital Dacar (ou Dakar), local onde a narrativa filmográfica se desenrola. Logo no início é possível apreender que o filme será permeado por um tom documental ficcional ao acompanharmos de perto os processos ritualísticos da luta tradicional senegalesa de nome Laamb. Entre banhos, vestimentas, talismãs e bendições, dois lutadores se preparam ao som de uma torcida fervorosa, acomodada em uma espécie de arena. O resultado da luta não agrada Baye – protagonista do filme – que assiste a disputa com seu amigo Kaba. A partir daí saímos dessa ambientação ancestral para imergirmos na realidade contemporânea de jovens senegaleses. Os diálogos entre os dois amigos apresentam o mote da obra: a decisão de Baye sobre liderar ou não, de forma clandestina, uma embarcação rumo ao território Europeu.
O quanto sabemos do continente africano e seus países? Adentrar o vilarejo de pescadores, pertencente à Dakar, onde habitam esses jovens senegaleses, é notar correspondências expressivas com as periferias brasileiras e as demandas da juventude de países subdesenvolvidos: mudar de condição econômica, ainda que por vias ilegais. Há uma semelhança familiar entre a paisagem árida da vila, presente em seus tons ocres, que partem do chão às estruturas arquitetônicas da cidade com comunidades sul-americanas, como as pertencentes à Bolívia, Peru, entre outras, que colorem o cenário através das vestimentas de seus moradores. Azul, amarelo, branco, laranja, magenta, marrom, são as cores que compõem a palheta de O Barco da Esperança.
Dessa vila periférica parte uma piroga – embarcação estilo canoa – com trinta e um tripulantes, entre senegaleses e guineenses, de religiões, línguas, etnias e sonhos distintos, mas com algo em comum: a esperança de abarcar em solo europeu. Dado o começo da jornada, descobrimos que o menor dos problemas desses viajantes é chegar à Espanha, a maior dificuldade é aquilo que é ruidoso nos diversos territórios, lidar com as diferenças, senso de coletividade e solidariedade. Ao topar com outra piroga à deriva, Kaba, responsável pelo motor do barco, acelera no sentido contrário, temendo os desesperados por sobreviver e na ânsia de manter vivos os trinta e um de sua embarcação. Essa cena desperta a certeza de que, neste exato momento, inúmeras pirogas podem estar perdidas no infinito oceano atlântico. Ao deixarem para trás as pessoas da canoa à deriva, é despertada a crença de que, a partir dali aquela piroga está amaldiçoada. Um a um vemos esses personagens morrendo, seja pela tempestade que arremessa pessoas contra o barco ou para fora dele, seja da sede e da fome que surgem com o tempo em alto-mar, de uma embarcação sem norte, pois o temporal levou consigo o GPS. Sem comida, água, combustível e rumo passam então a responsabilizar a si mesmos, ficando evidente nos diálogos entre esses personagens uma não compreensão socio-política-econômica sobre os fatores que os fazem estarem ali naquela condição, aproximando ainda mais de uma realidade brasileira de consciência política em nível macro societal.
O simbolismo presente na canoa, um microuniverso na imensidão do mar, em contraponto com o imponente e resistente baobá, presente nas mirações de Abou, personagem místico e religioso da trajetória, desperta o entendimento das relações do ser senegalês ou guineense, um misto de fragilidade diante das precariedades e da força de superar os desafios que se apresentam no caminho e nas vivências incertas. O subtítulo do filme Goor Fit (tradução “Ele que não teme nada”) é o nome inscrito na Piroga que abarca intacta nas ilhas Canárias, arquipélago espanhol.
Os dias dessa viagem se tornam vidas inteiras. Dentre tempestades, fome e mortes, o que fica pungente é a dimensão do real imantada nessa ficção. O Barco da Esperança tem duração de 1 hora e 27 minutos, recheada de planos gerais que retratam como fotografias as paisagens e cenários do filme, e os planos detalhes são dedicados a vermos de perto os traços e marcas dos rostos desses seres-universos, tão distantes e tão próprios do nosso cotidiano, com suas alegrias, angústias e reflexões acerca do existir e do sobreviver.
*Juliana Segóvia integra o Coletivo Audiovisual Negro Quariterê, é graduada em rádio e TV e mestre pelo programa de Estudos de Cultura Contemporânea (Ecco), pertencentes à UFMT. Atua no mercado audiovisual independente há 6 anos e vê o cinema como uma arma de resistência, denúncia e luta. Aprendiz dos sentidos, respeita a luz e o silêncio.