Copa do Mundo – “Sem Amor” (Rússia) – Por Valdecy Azambuja
Dia de abertura da Copa do Mundo de Futebol. Na Rússia, 32 seleções buscam o título em seus gramados. E aproveitando a ocasião, Ruído Manifesto promove uma celebração ao cinema. Durante o período de disputa do mundial, o Ruído apresenta o que de melhor foi produzido na arte cinematográfica de cada um desses países. E para começar, Sem Amor, da nação anfitriã. Filme de 2017, que chamou a atenção do cineasta independente Valdecy Azambuja,* por expor as fraturas de um país em crise, seja existencial, seja institucional, pelos desígnios de um poder autoritário (em que pese às graves violações aos direitos humanos, como a homofobia). Boa Copa e bons filmes para todos!
*
Sem Amor. Direção: Andrey Zvyagintsev. País de origem: Rússia, 2017
Em uma entrevista, o cineasta russo Andrey Zvyagintsev (Elena, 2011; Leviatã, 2014) insistiu que o título original de seu filme, Nelyubov, não se traduz perfeitamente no título em inglês Loveless. Em português, Sem Amor é um estado definido pelo seu vazio – a falta de amor causando um vazio. Mas Nelyubov, enfatizou Zvyagintsev, é mais do que isso. É um tipo de “não-amor”, demarcado não apenas pela falta de amor, mas também pela presença de outra coisa tomando seu lugar. Essa “outra coisa”, que consome todos os vestígios de afeto quando o amor desaparece de nossas vidas, é o ponto crucial do mais recente filme de Zvyagintsev.
A desolação do filme é evidente desde as primeiras imagens – há árvores nuas, um riacho silencioso e nevascas suaves e implacáveis. Na próxima cena, é outono, mas não temos certeza se o filme está voltando ou avançando no tempo. Alexey, de 12 anos, volta para casa, após a escola, pela floresta, com as folhas caídas amassadas sob os sapatos. Ele pega um longo pedaço de fita jogada no chão e brinca com ela, até que a arremessa no topo de uma árvore nua – tremulando ao vento, quase como uma bandeira anunciando algum lugar misterioso que só ele conhece o caminho.
Em casa, vemos os primeiros vislumbres do que essa “outra coisa” realmente é, esse “não amor”, pois há um peso inexplicável no ar quando compradores em potencial visitam o apartamento de seus pais. Alexey finge ler enquanto sua mãe menciona casualmente aos visitantes que ela e o marido estão se divorciando. Uma vez que os visitantes saem, seus pais batem as portas e gritam um com o outro. Durante esse tempo, o garoto se agacha atrás da porta, e despercebido, chora – ossos finos escapando de sua camiseta branca sem mangas, seu rosto contorcido em tristeza e dor.
Seus pais, Boris e Zhenya, são um casal incompatível, eles se odeiam e ignoram o filho. Com o divórcio iminente, nenhum deles quer mantê-lo (Boris acha que uma criança deveria viver com sua mãe, enquanto Zhenya argumenta que na sua idade, ele precisa de mais um pai, antes de acrescentar que Boris é inútil e que Alexey terá como destinos o internato e o exército). Boris corre o risco de perder o seu emprego como resultado de seus problemas domésticos: seu chefe religioso estabeleceu uma política corporativa que exige que seus funcionários sejam casados. A “outra coisa” torna-se um pouco mais clara, é o que resta da instituição oca do casamento, uma vez que o companheirismo, amor e preocupação desaparecem da equação. O desaparecimento dos ideais emocionais e românticos do casamento é espelhado no colapso da estrutura capitalista corporativa que insiste nisso, à custa da felicidade de alguém. Sem Amor apresenta a ambivalência em relação ao casamento, seja como uma instituição sagrada ordenada pela Igreja no “felizes para sempre”, seja como culminação do amor romântico.
Enquanto esperam que o divórcio seja finalizado, marido e a esposa têm casos bem-sucedidos – Boris com Masha, uma mulher muito mais jovem que ele, e Zhenya com um homem mais velho, Anton, que é carinhoso, mas nunca diz a ela que a ama. Eles estão tão imersos nos detalhes e vantagens de seus respectivos novos relacionamentos que se esquecem do fato de que estão empurrando Alexey para um ponto de desespero.
Na fotografia, as cenas internas do filme são sempre mal iluminadas – as pessoas se beijam e conversam na escuridão ou, na melhor das hipóteses, à meia-luz. Quando os casais fazem sexo, eles são iluminados apenas pelas luzes da cidade fora de suas janelas. Não vemos o rosto de Alexey quando ele soluça antes de ir dormir, e logo depois que seus pais brigam, seus rostos são visíveis apenas em silhuetas contra a luz das telas de seus telefones.
A certa altura, Alexey desaparece, o que sua mãe somente percebe quando alguém da escola telefona questionando a ausência do aluno. Há uma clara ironia no fato de que Zhenya, que está tão preocupada em estar atualizada sobre tudo o que acontece em seu próprio mundo e na vida de outras pessoas – sempre em redes sócias pelo celular –, não tem ideia de quando seu próprio filho está ausente. Quando a polícia não consegue encontrar o garoto, uma equipe de resgate voluntário é convocada, e logo vasculham a cidade. Sua mãe não sabe quem são seus amigos ou quais são seus hobbies, e os pais ficam surpresos quando são levados a um esconderijo secreto em um prédio abandonado que Alexey costuma visitar.
O olhar crítico de Sem Amor sobre a instituição social da família aparece de modo evidente quando a narrativa apresenta a avó “tipicamente amorosa” de Alexey. Ela chama Zhenya de prostituta e revela que não está deixando nada para ela. A crise emocional do filme não causa nenhuma reflexão para nenhum dos membros da família, exceto fortalecer seu amor pela propriedade e pelo dinheiro. Na maioria dos filmes, o desaparecimento de um filho provavelmente uniria emocionalmente os pais separados, mas em Sem Amor, o episódio só aumenta a raiva viciosa que está progressivamente os devorando. Zvyagintsev anula a ideia de redenção romântica, não há apenas falta de amor, há também uma incapacidade frustrante de cuidar de outro ser humano que sofre. A paternidade em si é vista como uma causa perdida. Zhenya diz que é repelida pela memória de Alexey ao nascer, enquanto isso, seu amante Anton não consegue que sua própria filha o veja, e a mãe de Masha (amante de Boris) zomba de seu amor por Boris e a aconselha a manipulá-lo como se ele fosse uma criança.
Zvyagintsev parece preocupado com a ideia de pessoas perdendo suas conexões pessoais e emocionais em um mundo material hiperconectado (Zhenya é obcecada por seu telefone, ela verifica constantemente as atualizações da mídia social e tira selfies e fotos de sua comida.) Em Sem Amor, Zvyagintsev usa a metáfora visual de uma grande antena de TV aparecendo no fundo quando a equipe de busca não consegue encontrar Alexey em qualquer lugar, ressaltando o fato de que nossos sofisticados e modernos dispositivos de comunicação não podem nos ajudar a localizar um garoto de doze anos de idade que está desaparecido.
Zvyagintsev, um crítico declarado do governo de Putin e um forte defensor das eleições livres na Rússia, tem sido frequentemente atacado em seu país por seus filmes. Se vale de um divórcio conturbado para ilustrar a atual e disfuncional Rússia pós-comunista, onde nada vale além do dinheiro e do desejo de ganhar mais. Zvyagintsev ilustra a evisceração da sociedade sendo esmagada pelo rolo compressor das políticas do governo. A obsessão egoísta completa de Boris e Zhenya, a ausência de compaixão e amor, é sintomática do momento que a Rússia vem passando, essa “ausência de amor” é exposta no filme como algo natural, como se a perda do amor fosse a progressão natural em uma sociedade governada por políticos autoritários.
*Valdecy Azambuja. Corintiano apaixonado por cinema. Cineasta independente, escreveu e dirigiu os curtas-metragens Sísifo (2014), Risos na Madrugada (2015) e Alheio (em pós-produção). Contato: azambujavaldecy@gmail.com