Copa do Mundo – “Te Prometo Anarquia” (México) – Por Thiago Costa
Te Prometo Anarquia. Direção: Julio Hernández Cordón. País de Origem: México, 2015.
O cinema mexicano é intenso. Quase tão intenso e rico quanto o próprio país. Em sua época de ouro, entre as décadas de 1940 e 1950, ficou marcado por grandes produções melodramáticas, que enchiam as salas de cinema e circulavam em exibições ao redor do mundo. Sua grandeza cultural e complexidades políticas atraíam (e atrai) os olhares. É dessa época, meados do século passado, filmes como Viva Mexico, de Sergei Eisenstein (iniciado em 1932, logo abandonado e só terminado em 1979 a partir do material sobrevivente); Viva Zapata! (1952), de Elia Kazan, com ninguém menos que Marlon Brandon (que atuou em mais três filmes relacionados com o México); e ainda as obras de Luis Buñuel, como Los Olvidados (1950) e El Anjo Exterminador (1962). Na segunda metade do século XX, o México continuou produzindo. Na década de 1970, o país foi palco dos filmes do franco-chileno Alejandro Jodorowsky, e mais recentemente, foi o primeiro (e até aqui o único) país latino-americano a receber o prêmio Oscar de direção, com três estatuetas: Alfonso Cuarón, com Gravidade, em 2013, Alejandro González Iñárritu, em 2014, por Birdman, e 2015, por O Regresso, e Guilhermo del Toro, este ano, por A Forma da Água.
A abundância de obras mexicanas em festivais e em salas comerciais de cinema no mundo demonstram a importância da produção cinematográfica do país americano. E suas características geopolíticas contribuem para o refinamento de suas narrativas. Um filme recente, que articula as heranças do país com uma proposta mais contemporânea, é o Te Prometo Anarquia (2015), quinto longa-metragem de Julio Hernández Cordón. Vencedora de melhor filme latino-americano no Festival de Cinema do Rio de Janeiro em 2015, a obra de Cordón acompanha dois jovens amigos de infância, e amantes, Miguel e Johnny, na imensidão de um México labiríntico, cinza, marginal.
Em uma cultura machista e conservadora, a relação homoafetiva entre os protagonistas certamente incomoda, provoca. E causa choque já na primeira sequência do filme, em que os dois amigos transam na presença da namorada de Johnny, Adri, que adormece ao lado. A homossexualidade realmente não é o tema central do filme, já que o sexo é vivido de maneira livre e espontânea. No entanto, serve como fundamento que estrutura o universo criado por Hernández Cordón. Miguel e Johnny são dois rapazes sem rumo, que andam de skate pelas ruas da cidade do México, drogam-se, contrabandeiam sangue e, eventualmente, se amam. Como poderiam amar outras pessoas.
O caos e a desorientação dos personagens são traços comuns na sociedade contemporânea. Não se trata de puro niilismo, porque, para Miguel, ainda existe a esperança, o esforço meio tateante pela estabilidade, seja afetiva – com Johnny –, seja financeira – com o tráfico de sangue –. Mas, ao contrário, constitui uma interpretação equivocada e neoliberal de anarquia, associada à completa ausência de organização e de individualismo extremado. Uma geração de monstros, como afirma o poema declamado por outro jovem no início do filme, uma geração de seres perdidos, apodrecendo sem jamais atingirem a maturidade. Sem destino, sem ídolos, sem objetivos ou qualquer planejamento para o dia seguinte. O eterno aqui, para sempre o agora, perpetua orgia do instante. Para além disso, tudo se desmancha. Se liquefaz. Ou se vende, como o sangue e a vida.
Embora a relação entre Miguel e Johnny oriente a apreensão do filme, não se trata (mais uma vez) da representação de um casal homossexual. A sexualidade é um escopo para os sentimentos e as ambições de ambos os personagens. Para Johnny, um meio de sobrevivência, já que Miguel é quem fornece quase tudo de que precisa: roupas, dinheiro, amor, companheirismo. Para Miguel, o playboy que tudo dispõe e arranja, Johnny representa o desejo não realizado, talvez o único; não atingível senão parcialmente e, por isso, o apreço tão forte, tão vivo. A venda de sangue é a transgressão juvenil, pano de fundo por meio do qual experimentam a existência, pensam fazer algo de valor e, assim, terem alguma relevância no e para o mundo (no qual vivem e não procuram entender). Mas notamos suas diferenças ao longo do filme. Não são apenas dois amigos apaixonados um pelo outro. As complexidades de classe, em um país como o México, tornam-se agudas. Johnny é filho da empregada, Miguel, filho dos patrões. Mundos paralelos, distantes, alheios. A proximidade entre eles é só aparência, porque a vida os distancia a cada passo em que se buscam. E nessa busca, a distância se alonga, acomprida-se, na medida em que as diferenças se adensam.
O filme é lento, tomadas longas, silêncios, trilhas sensíveis. Closes em Miguel, planos mais distantes em Johnny. Miguel vestido, Johnny frequentemente nu. No fim, os estereótipos. O problema de enredos mirabolantes é o risco de soluções fáceis ou óbvias. No entanto, a proposta talvez fosse exatamente essa: o filho da empregada, marginalizado, é o problema, e deve resolver (leia-se, sobreviver) do seu modo, ou seja, sozinho. Já o filho dos patrões sempre pode contar com o carinho do bolso do papai. Enviado para longe da situação que ajudou a criar, Miguel não esquece, contudo, seu melhor amigo e amante. Este trecho, ao fim do filme, é realmente belo.
É preciso ir mais fundo. São relativamente comuns obras cuja temática relacionam-se com a juventude. Representações de jovens e adolescentes que colocam sua vida – e a dos outros – em risco. Suas paixões ingênuas, sua insensatez e o ímpeto inconsequente. Características típicas da idade são expressas e traduzidas em atitudes perigosas, em atos de desobediência. O uso intensivo de drogas e álcool, envolvimento com gangues e mafiosos, delinquência. Transgressão. Desde Juventude Transviada (1965), de Nicolas Ray, com James Dean, o jovem tornou-se objeto de reflexão cinematográfica, do e para o cinema. Em Te Prometo Anarquia são mais ou menos claras as referências ao cinema de Gus van Sant e Larry Clark (quem não lembra de Kids?). A sensação é de que já vimos essa história antes.
E tal como seus precursores, Cordón adota um tom realista, às vezes experimental. Talvez, para alguns, um pouco exagerado ou desnecessário. Pois, embora bom (técnica e esteticamente), resta a impressão de filme formatado e destinado aos festivais. Para o público que frequenta esse tipo de espaço. Claro, não há mal nisso. De todo modo, o que vemos é a aspiração exagerada de retratar de forma lírica as transgressões de uma geração apática, desorientada. E nada é menos poético que a incapacidade de crescimento, de assumir responsabilidades, a reiterada negação da superação da infância. O poema declamado por um dos jovens sintetiza não apenas o filme, mas toda a sua geração. Suas ambições, frustrações, lamentos. A incapacidade de enxergar algo além das próprias dores e insatisfações. “Monstros”, diz o poema.
Mais do que qualquer outra coisa, Te Prometo Anarquia é uma trágica história de amor, condenada desde sempre à fatalidade, entre dois homens que se recusam a aceitar as interdições da vida como ela é.
Ps: ao final do filme, bateu aquela vontade esmagadora de assistir – pela enésima vez – Happy Together, de Wong Kar-Wai. Este, sim, mais lírico e perturbador. E igualmente lindo.
*Thiago Costa é historiador. Doutorando em Estética e História da Arte pela USP. Autor de O Brasil pitoresco de Jean-Baptiste Debret ou Debret, artista-viajante (Ed. Multifoco, 2015).
Br
Algo que não entendi é se os protagonistas acabam juntos ou só se trata de lembranças!?
thiago costa
É preciso assistir o filme. o final não é tão surpreendente
.