“Correnteza”, um conto de Divanize Carbonieri
O conto “Correnteza” de Divanize Carbonieri faz parte do livro Passagem estreita (no prelo) e foi agraciado com o segundo lugar no Prêmio Off Flip 2019.
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CORRENTEZA
Deitada no fundo da canoa, entrevia o nuançado cambiante do firmamento enquanto fechava e abria os olhos. De quando em quando, inspirava fundo e suas mãos agarravam-se à borda da embarcação com força. Mais uma vez era feita cativa por seu corpo, que procedia em conformidade com o próprio arbítrio. Fiava-se de que tudo passaria novamente com celeridade. Quantas outras antes? Não permitiu que as lembranças se achegassem. O ido raramente tem boa serventia no presente. Só presta para alumiar que ocorrências ruins se repetem. Por vezes, era arremetida por tremores e pontadas. Sentia o couro queimar e de todas as partes do rosto escorriam gotas de suor, que também brotavam do pescoço e encharcavam o peito. Uma eternidade, mas nem tanto. Sabia por seguidas provações que era melhor descuidar do pensamento e estar ali como se não estivesse até que tudo viesse a termo. Nada daquilo deveria se dar. Nunca. Mas tinha a sensação de que o corpo estava prestes a romper. Como um ramo de árvore que se parte ao sustentar um fruto verdoengo, mas já muito massudo. A intensidade da dor aumentava e passava a ser impossível se manter aquietada. Erguia o tronco numa torcedura quando atingia um pico e depois se deitava ao obter alívio. Nesse desassossego contínuo, empenhava-se para não emitir ruídos. Gemer era coisa por demais indigna. Mesmo estando só, não sucumbiria dessa forma. Aquilo seria apenas passageiro e logo estaria de volta, galopando e pelejando, como bem estimava. Não era mulher em que se pusessem correias permanentes. Sempre campeando, pousando ao relento. Nada como Suirami, que se deixara enredar. Desde os nove anos juntas. Irmã de batalhas. A mais corajosa, a mais calejada. Suirami, com quem tinha aprendido tudo o que sabia sobre cavalos, garruchas e machos. Um dia Suirami se foi. Já fui muito de guerra, quero agora ser de paz, ela tinha dito. Quero estar com este que está abeirando e com todos os outros que me vierem depois. Muitos. De diferentes estaturas, ao derredor de mim. Levo o que vivemos sempre comigo. Ouviu tudo como se não fosse verdade, como se fosse só o silvo da rajada zunindo rente aos ouvidos. Permaneceu olhando obstinada para frente. E Suirami partiu sem que lhe desejasse boa fortuna. Boa fortuna. Não para tal destino. Mas não seria igual. Passaria por tudo aquilo do mesmo modo que nas ocasiões anteriores. Ilesa. Intocada pelo tormento passadiço. Fazia muita força agora, tanta que todo o entorno desaparecera. Foram várias tentativas malsucedidas, a ponto de recear que algo estivesse comprometido. Será que sua vida findaria ali, rendida como nunca antes? Mas quem só conta consigo mesma para subsistir não pode se acoitar na covardia. E logo grande parte do volume deslizou para fora numa efusão vigorosa de sangue e outros líquidos. Com a cabeça recostada novamente, ouviu o que lhe pareceu o ganido de cachorrinhos separados da mãe e se lembrou da cadela que morreu depois de parir. Não podia fazer nada pelas crias, pequenas demais para serem alimentadas por mãos humanas. Durante três dias ouviu seu choro faminto enquanto as assistia se amontoando umas nas outras em busca de calor. Aveludadas e tenras. Como uma novidade para quem está habituada ao velho. Vai e afoga esses bichos por misericórdia, tinham lhe rogado. Mas não teve pulso, e morreram mesmo de inanição. Por aquela hora, a que chegou percebia que já tinha estado ali antes, embora fosse tudo ainda enevoado e tremeluzente. Uma lástima estar de volta. Depois de quanto tempo? Esperava ter a dádiva de partir em breve. Da última vez não tinha se retardado muito. Agora estava atada àquela mulher. Seguro que o afeto dela a sufocaria. Não tinha precisão disso. Não suportava mais o fardo das relações sanguíneas. O ar que sorvia fazia suas narinas arderem. Sentiu a clausura do corpo e se entristeceu. A outra parecia ter recuperado o fôlego. Sentou-se por fim, extraiu o que restava daquela massa dentro de si, seccionou o cordão com os dentes. Por que o sangue rescende a algo antigo? Quando uma pessoa perece sangrando também exala assim. O cheiro do nascimento é o mesmo da morte. Tentava se dedicar aos gestos necessários e abstrair os gritos, que se tornavam mais agudos e reverberantes. Sem deter o olhar em parte alguma, tomou finalmente no colo o amontoado que se agitava com braços e pernas ainda descontrolados. Equilibrando a figura no comprimento do antebraço, aproximou-a lentamente do arroio, que lambeu com calma suas extremidades. Talvez porque a água estivesse amornada depois de um dia todo de sol, talvez por simples nostalgia de outro meio mais gentil, a recém-nascida se aquietou e adormeceu. O sonho começou com a sensação de que a ventania rugia por sua face e membros. Como se o paredão de ar se dividisse em dois. O horizonte era ainda escuro, mas sentiu a vibração quente da coisa viva entre as pernas. Um cavalo. E o panorama se abriu a sua visão. Foi inundada pelo já conhecido deleite de percorrer a galope a imensidão da invernada. Algum contentamento enfim. A adulta deixou que as marolas fossem lavando pouco a pouco as graxas que besuntavam aquela carne nova. Queria que estivesse completamente limpa, purificada do embrenhar-se sangrento no mundo. Libertada dos odores. Enquanto isso, mirava o arrebol e antecipava a excitação que sentiria quando pudesse novamente varar o vento numa montaria veloz. É bom campear sem paradeiro. Mergulhou o braço e deixou que aquela forma repousasse abaixo da superfície por alguns instantes. Então a desprendeu e observou o pequeno invólucro sendo levado inerte pela correnteza.
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