Seis poemas de Daniel Ianae
Daniel Ianae nasceu em Cuiabá e continua não morando por lá. É estranho falar sobre mim, falar que eu sempre cresci e daí parei quando tinha 1.69m, que um dia tinha 100g e hoje tenho 74kg, que se eu parar de respirar eu consigo contar até 50, 60, depende de quão rápido eu contar. É estranho eu não saber exatamente o que é poesia, e que no entanto eu a encontrei um dia numa piscina vazia, e soube que era ela. Nos resgatamos, foi bonito. Desde então, brincamos juntos por aí. Espero que os poemas abaixo possam resgatar a brincadeira nossa de cada dia, com a poesia.
***
Aprendi a descascar as coisas do mundo
em finas camadas
mas são os meus pedaços
que não sei pra onde vão
*
frio é uma distância até o sol
saudade é um corte seco nas linhas dos trópicos
impressionante é um vagalume no céu
toda forma de amor
está presa à sua
coluna vertebral
a vida se orienta com vidas perdidas
estrela não seca
um arame pode dar a volta ao mundo
o resto é preciso
conversar
*
A lama endurece
vira concreto
A gente esquece
e quem perdeu a vida
o teto
E o rio e o mar?
Ganharam uma placa
[ Proibido entrar ]
*
Você se levanta
com ar seguro
de quem sabe o segredo
mas saiba
meu desejo
[ você não sabe
É ar puro
*
Que história é essa
que chegaram os navios
que querem conhecer a terra
que precisam desembarcar mais gente
que gostaram das mulheres
que rezar é de outro jeito
que é ano mil e quinhentos
que agora filho chama Pedro, Manuel, Maria
que vem mais navio
que gostaram demais das mulheres
que falta vergonha
que vão começar a plantar
que em troca vão levar o resto
que a gente mesmo tem que derrubar
que se mata com tiro
que agora fala português
Que história é essa
que agora chama Brasil,
hein?
*
Um ditador nasceu no Brasil.
Quando nasceu, não parecia assim tão diferente
do professor que nasceu ao lado
ou da cabeleireira que acabara de nascer
até por isso ninguém deu atenção especial
Quando começou a andar, tropeçava e chorava
‘Ele está caindo demais, deve ter algo errado nas pernas’ – disse a professora
mas a mãe não tinha condições de dar atenção especial pra essa situação
‘Um dia endireita, professora. Todo mundo endireita’
Quando começou a falar, começaram os primeiros problemas de convivência
não falava ‘pai’, ‘mãe’ só falava ‘piu piu’ ‘pei pei’
a mãe achava que era imitação de pintinho,
o pai brincava que ele não sabia ainda falar ‘peitinho’
até por isso ninguém deu atenção especial
Quando começou a andar, falar, e jogar pedaços de pau no cachorro
– tudo ao mesmo tempo –
A professora o colocou de castigo
A mãe o colocou de castigo
E o pai lhe deu uma boa surra
O professor, aquele da maternidade, mal havia terminado sua terceira aula da manhã
A cabeleireira, aquele da maternidade, mal havia terminado o segundo corte do dia
/ quando a guerra foi anunciada
O ditador, aquele da maternidade, já havia entrado num tanque de guerra e se dirigido até
a capital do país. De dentro do tanque, anunciou a guerra.
Quando começou a andar, falar e entrar em tanques de guerra,
ninguém sabia mais o que fazer.
*inspirado no poema Primeira foto de Hitler de Wisława Szymborska.