Seis poemas de Danielli Cavalcanti
Danielli Cavalcanti trabalhou quase 10 anos na ONG Maiz, em Linz, na Áustria. Desde 2016, mora na Dinamarca, cursa docência para o ensino fundamental e escreve, sobre o viver sob o manto e entre a cerca da migração, no blog jardimmigrante.wordpress.com. Tem as seguintes obras publicadas: Flor de Linz (2016), bilíngue português e alemão. Livro infantil Sopa de Sapo, em português, dinamarquês (2018) e alemão (2019). Livros de poesias: Quando eu outono, tu primaveras (2018) e É sempre outono na migração (2019). Participação nas seguintes coletâneas: Mulherio das Letras – Prosa (2017), Mulherio das Letras – Poesia (2018), Mulherio das Letras na Europa – Outubro literário (2018), Elas e as letras – Ed. Versejar (2018). Coletânea infantil: Com o pé na terra – Ed. Caleidoscópio (2018).
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É sempre outono na migração
Transposição
Entre fronteiras geográficas
E estações biográficas
Entre coloração, exposição, fomentação
É sempre outono na migração
Transformação
Entre o tempo e as paisagens
E custosas passagens
Entre validade, vaidade e asseveração
É sempre outono na migração
Introspecção
Entre imagens e linguagens ditando o rito
Vai-se adaptando o grito
Em sobreposição, justaposição, contraposição
É sempre outono na migração
*
Indignar-se, por quê?
E se fosse você a fugir
da guerra, da morte, da fome?
Tendo que muito fingir
que seria seguro o mar
e vê sua filha afundar
Mas não, essa não é você
Então, preocupar-se, por quê?
E se fosse você a fugir?
sua vida, seu lar abandonar
Como tábula rasa ser tratada
E ter sua dignidade negada
Ainda assim, ter que recomeçar
Mas não, essa não é você
Então, afetar-se, por quê?
E se fosse você a escolher
na cidade em ruínas morar
ou dessa guerra correr
Suplicaria por suporte
Fugiria até sem passaporte
Ou preferiria morrer?
Mas não, essa não é você
Então, indignar-se, por quê?
*
Corpo migrante
Corpo anunciante
Sem abrir a boca, os braços ou pernas
Corpo denunciante
Corpo subversivo
Talvez seja por isso
Que uma de suas armas
Seja seu viço
Corpo reclamante
Da estação sem flor
Do odor do opressor
Possui status de intruso
Entre ficar, ir e voltar
É um corpo confuso
Corpo flagrante
De política omissa
Jaz no mar da injustiça
Corpo flutuante
Se todo viver é legítimo
Por que quem pede abrigo
Não encontra porto operante?
Corpo instigante
Sob ele o olhar investigativo insinua
Fingindo calcular a distância pra lua
Ora ignora um elefante no elevador
Ora exerce um voyerismo avassalador
Corpo mareante
Salgado de saudade é sofredor
Azedo de indignação, questionador
Politicamente apimentado, desafiante
Adocicado, adaptado, inocente
Ensosso de subserviência, plangente
Molhado de utopia, sonhador
Corpo pelejante
Sente como todo corpo lacrimante, inquietante, errante
Sonha como todo corpo carente, dissidente, fulgente
Deseja como todo corpo aspirante, delirante, mutante
Mas corpos não são iguais
Há diferenças brutais
Corpo negro, latino é migrante
Expat é corpo branco visitante
Corpo viajante
Carrega o mundo nas costas marítimas
Nos braços desérticos, nas pernas alpinistas
É a mais-valia ambulante
Seja indocumentado ou carimbado
É sempre um corpo distante
Mas todo corpo migrante
É acima de tudo
Um corpo flamante
*
O Capital devora tudo
(Homenagem à Brumadinho)
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Bem na hora do almoço
A sirene da pausa tocaria
Mas já não adiantaria
Pois havia lama até o pescoço
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Nas faces, nas árvores, nos lares
Centenas de vidas soterradas
Sufocadas, à força enterradas
Ele crava uma espátula no nosso peito
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Violenta o ecossistema
Mas o que importa é o contrato
A cláusula do mais barato
A tudo mais, dá-se um jeito
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Deixa um rastro de destruição
E mães à espera por boa notícia
Elas passam por uma eterna sevícia
Pois não têm competência pra morte, só pra vida
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Impregna seu horror por todos os lugares
Uma mulher perde seu bebê no rio
É encontrada atolada, desolada, é salva por um fio
É salva?
Salvo está o capital
Que mesmo cometendo tanto crime ambiental
Segue firme na cotação do metal
Enquanto as vidas transbordam-se de dor
E a natureza é devastada pelo lamaçal
O capital devora tudo
E vomita seu rejeito
Aí chegam os bombeiros
Fazem um trabalho fenomenal
Um esforço sobrenatural
Eles são quem mais respeitam a vida
Limpando o vômito do capital
*
Outono é a estação da migração
Pássaros migram pelo refúgio
Pela chance de construir ninhos
Pelo prazer do voo
Galhos secos caem
Árvores se desnudam
Raízes se fortalecem
O cinza importa a cor
Ao cinza a cor importa
Apesar do tinteiro unicolor
Algumas folhas descobrem seu colorido, outras o cobrem
Todas tentam reluzir, seduzir, traduzir a próxima estação
Aves metálicas transportam passados e futuros
Algumas carregar apenas presentes
Outras sofrem com o peso de todos os tempos
Há transbordamento de inquietações
Transformação por vontade, necessidade ou imposição
Transtopia refletida em geografias, biografias, grafias
Outono é a estação da migração
*
Do olhar latinoamericano
O primeiro idioma a molhar a língua
Faz morada no coração
Os demais invadem o corpo
O do país residente é um exercício de yoga
Quem construiu castelos na areia do além-mar
Tem as mãos sempre sujas de terra
Apesar de estar sempre (se) limpando
Os ouvidos despertam-se com sotaques e achaques
Corpos transfronteiriços, entre voos e baques,
Transformam seus caminhos
Podem-se contemplar o mundo por diversas lentes
Estonteados ficam os olhos alumiados de Norte
Lacrimejados ficam aqueles banhados de Sul
Mas Greenwich não é o meridiano
Do olhar latinoamericano
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