De pernas trôpegas a poesia caminha – Por Caio Augusto Leite
Na coluna mensal “As armas secretas” (clique aqui para acessar todos os textos da coluna), Caio Augusto Leite escreve sobre livros, CDs, peças, filmes e outras obras criadas por artistas contemporâneas e/ou contemporâneos. A palavra de ordem é: ‘hoje’. O título da coluna é uma homenagem ao grande escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) e a seu livro Las armas secretas (1959). A coluna irá ao ar sempre na primeira sexta-feira do mês.
Caio Augusto Leite nasceu em São Paulo em 1993. Doutorando em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) com tese sobre os 4 romances de Lygia Fagundes Telles, é mestre pela mesma universidade com dissertação sobre A Paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Integrou o Printemps Littéraire Brésilien 2018 na França e na Bélgica a convite da Universidade Sorbonne. É autor dos livros Samba no escuro (Scortecci, 2013; ficção), A repetição dos pães (7 Letras, 2017; contos), Terra trêmula (Caiaponte edições, 2020; contos); e publicou as plaquetes numa janela acesa a noite não entra (Edição do autor, 2020; poemas), a cicatriz antes da ferida (Edição do autor, 2020; poemas), abismos mínimos (Edição do autor, 2020; poemas), Silêncio de frutas sem verão (Edição do autor, 2020; poemas), 30 poemas de domingo (Edição do autor, 2020; poemas), Aceno para outras ilhas (poemas para poetas) (Edição do autor, 2020; poemas) e outras.
***
De pernas trôpegas a poesia caminha
Toda forma de expressão carrega marcas de subjetividade de quem a produz, algumas tendem a buscar uma neutralidade e um objetivismo, minimizando tais marcas, como uma dissertação ou a notícia. A poesia, por outro lado, é por excelência o discurso do Eu – ainda que alguns poetas busquem se retirar da camada mais imediata do texto, no nível mais profundo o sujeito poético permanece.
Dessa forma, digo que Paganíssima trindade (Penalux, 2020), de Mô Ribeiro, é um livro de poemas que conversa com os nossos mais básicos anseios em relação ao que seja a poesia. Não há tentativa de se ocultar, nem o medo de se colocar como um Eu que possui fraquezas, como todos nós, e por isso há tanta comunicação em versos como “Faz-me falta o que não tive” ou “Tenho falta/ de ter falta”. Essa pungência do sujeito, se pode soar melodramática quando feita sem o apoio de uma linguagem adequada, chega até nós sem a sensação do exagero, pois a poeta aqui economiza ao máximo na utilização de palavras para criar imagens contundentes como “Ninguém sabe os meus calos / nem os sapatos que calço” – que traduz de forma sintética o sentimento de não ser compreendido pelo outro.
Tal escolha se faz presente nos dois poemas metalinguísticos a seguir:
Breve
Antítese da síntese
a verborragia
Pois ando sintética
Será preguiça
ou estética?
*
Miúda
Escrevo em palavra
pequena
para o subentendido
vazar
por entre
as frestas
Em “Breve” assinala-se que o contrário do sintético é o verborrágico, aquela poesia em que os sentimentos se tornam muito mais importantes do que a poesia, e o que lemos são poemas cheios de adjetivos que tornam o texto um amontoado de hipérboles que, em vez de nos cativar pela escolha poética das palavras, acaba por tornar a leitura arrastada e maçante. Já “Miúda”, nos lembra que a força do poético não está no que ele tem de explicativo, pelo contrário, está na possibilidade de abrir frestas no discurso, na ambiguidade da palavra, no sugestivo – a poesia não tem a intenção de nos comunicar um fato, mas internalizar um fato na estrutura de um poema, fazendo desse fato não o elemento mais relevante, mas um dos agentes que fazem do texto um objeto artístico.
Outro uso marcante nos poemas do livro é a da imagem das pernas. No lugar-comum, as pernas são representadas como fonte de equilíbrio – o que nos permite nos manter de pé, de forma ereta – e também como meio de locomoção – a partir delas podemos nos mover no mundo. Literariamente, ao utilizar a imagem das pernas e, mais do que isso, das pernas como partes que estão em desalinho com suas funções estabelecidas no imaginário, a poeta cria uma relação de descompasso entre Eu e mundo. Se em Drummond não havia ombros para sustentar o mundo, aqui não há pernas para estar no mundo, para investigar o mundo e se colocar nele como subjetividade. A imagem das pernas, do tropeço, do passo claudicante, é importante para assinalar essa distância que, por vezes, se impõe entre a realidade e o sujeito. Aliás, quando a poeta diz pernas, nem sempre está falando dos membros reais, mas também da ideia de perna, seu conteúdo deslocado para outros aspectos do ser como em “Pernas”:
As pernas da cabeça
bambas e trêmulas
não conseguiram
me fazer conseguir
Por fim, impossível não assinalar a questão da tristeza e da melancolia e da depressão, colocadas em cena através de vários poemas. Não como um pedido de desculpas ou como forma de tornar o sujeito alguém por quem se sinta pena. Nesse caso, os poemas mostram como é a relação do Eu com esses sentimentos, seus efeitos sobre o corpo, em suas relações com o mundo, no modo como a realidade se apresenta – e como é possível lidar ou não lidar com isso.
Assim, com linguagem sintética, imagens bem colhidas e temas que fazem com que nos reconheçamos em alguma medida com essa poesia, o livro de Mô Ribeiro segue a longa tradição de desnudamento do Eu, mas sem o desnecessário derramamento lírico composto por um fluxo de palavras e imagens clichês. Nem sempre para falar do Eu é preciso muito, até porque somos muito simples e o que queremos ser é muito pouco, não fosse os descompassos que insiste em se impor entre o mundo e o Eu.