De precipícios invisíveis e outros poemas – Por Luiz Renato de Souza Pinto
Luiz Renato de Souza Pinto. Graduado em Letras-Literatura (UFMT), atua na docência desde 1998; Mestrado em História (UFMT) e o Doutorado em Letras (UNESP). Atualmente trabalha com Ensino Médio e Superior (Graduação e Pós-Graduação) no IFMT. Desenvolve oficinas de Escrita Criativa (em verso e prosa); Poesia e Filosofia; Letra e Imagem; Narrativas Curtas; Estruturas de Romance; Literatura e Outras Artes. Possui três romances publicados: Matrinchã do Teles Pires (1998), Flor do Ingá (2014) e Xibio (2018), Cardápio Poético (1993) e Gênero, Número, Graal (2017) livros de poemas. Autor também de Duplo Sentido (contos e crônicas), e mais dois no prelo (pequenas narrativas), a exemplo de A filha da Outra (2020), o mais recente. Reflete acerca da construção de personagens, enredos, espaços e tempos, mas, sobretudo, sobre a posição do foco narrativo, os olhares sobre as personagens e as coisas, o entorno.
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De precipícios invisíveis e outros poemas
Em poucos meses estaremos (?) comemorando o centenário da Semana de Arte Moderna que trouxe novos paradigmas para a cultura brasileira. Não poderia passar em branco, sem trazer alguma provocação. Homens (brancos) e mulheres (não pretas) subiram as escadarias do Teatro Municipal de São Paulo naqueles três dias do fevereiro e deixaram seu protesto. Pois penso que é chegada a hora de se lavar a boca para falar da literatura brasileira do hoje. E para isso deve-se convocar homens e mulheres para uma espécie de lavagem nas escadarias do Teatro, como se faz nas igrejas da Bahia.
Não se trata de lamentar o ocorrido, como nos melancólicos blues que subiram do sul em direção a Nova Iorque, nos Estados Unidos da América. Se há cem anos a luta era contra a retórica parnasiana, o reino da métrica e o império da rima, que as correntes que aprisionam a temática livre (qualquer que seja) sejam novamente rompidas sem a necessidade de se quebrar o ritmo, a melopeia malandra da poesia brasileira. A ginga que venha do samba, do lundu, que tenha a cadência dos jogos de capoeira, até mesmo de um blues, sim, talvez na forma de um precipício em que, como peça de mobília
Envelheço como mãe, e nela me misturo
aos seus traços entalhados,
Às rugas mais fundas, mais velhas.
E juntas nos parecemos, engraçado,
à nossa antiga geladeira. (VILMA, 2021, p. 26-27).
Quando morei no Rio de Janeiro, no final dos oitenta e início da década de 1990 fiz parte do coletivo de poetas que se apresentava em vários espaços da cidade e região. Alguns não estão mais entre nós, como o Ex Kosta K, Samaral, Eud Pestana, Dalmo Saraiva, Lobo, Brasil Barreto, Paco Cac, Cairo Trindade, e deve haver outros de quem me esqueço agora, ou ainda não soube, por uma razão ou outra.
Dentre os vivos e atuantes, Mano Melo e Elisa Lucinda alcançaram bastante visibilidade. De Elisa me lembro bem da história que contava em torno de seu poema da geladeira, um de meus preferidos até hoje, por isso trago um fragmento abaixo:
Estava há uma semana vazia…
Fazia dias que ela não gelava senão água.
Até que choveu na minha conta outro dia:
Saí, comprei aves, peixes, lagostas, camarões…
Olhei pra ela, estava cheia.
Chuchus sorriam pra mim: há quanto tempo… diziam.
Uvas e beterrabas batiam palminhas do reencontro
Até a galinha morta era feliz por mim. (LUCINDA, da série ELETRODOMÉTRICOS, in: http://cariricaturas.blogspot.com/2010/02/dei-um-gelo-nela-o-poema-da-geladeira.html).
Pois no momento em que a geladeira cheia virou sonho de consumo, é chegada a hora “dessa gente bronzeada mostrar seu valor”. Vamos ouvir outras vozes que venham de qualquer baía, para além da de Guanabara, que sejam de Todos os Santos, que soprem do Recôncavo, como a de Ângela Vilma. E que se possa trazer de outros ritmos certa luminescência. Depois sacar de cada flor as mais belas pétalas para que se
experimente o gosto
de minhas rochas, desse fosso que nelas habita;
[…]
cada textura
dessa pele que, em feitio de rosa, se avulta. (VILMA, 2021, p.38).
E de lá desse canto (de página) dessa prosódia poética, que venham os traços invisíveis, como os de Noélia Lucia, que,
Ainda menina, repousa
na casa que hoje transforma
seres vivos em coisas: (VILMA, 2021, p. 48).
Que a poesia seja uma espécie de bordado, mas que vá além da costura e do aplique; que a poesia, como o bordado, não seja simplesmente uma coisa; que a linguagem do poema refresque-se a si mesma. Considero, de fato,
Estranha a ausência
que a morte borda:
ponto em cruz num pano
branco
todo branco
sem luz. (p. 70).
Em “Talvez um blues” há poemas dedicados para Kátia Borges, para a irmã não conhecida, para a mãe Terezinha, para Inocêncio Monteiro, para Marcos Zacariades, e ainda o dialogado com Wislawa Szymborska. Mas os títulos ainda denunciam outras referências, em algum grau. “Canção do Exílio”, “Os vinte anos”, “Quando nasci”, Felliniana”, “Ars poética”, “Manuel Bandeira”, “Para Sophia Breyner Andresen”.
Percebo que há muitas formas de agradecimento. Com tantos amuletos escondidos nessas cento e doze páginas, só podia mesmo ter sido editado pela Patuá. Que a poesia brasileira continue chegando a todos os recônditos do corpo e da alma, até mesmo para desdizer o que o último poema do livro anuncia: “É tudo muito inútil, é tudo muito surdo, e em vão”. (VILMA, 2021, p. 108).
REFERÊNCIAS
VILMA, Ângela. Talvez um blues. São Paulo: Patuá, 2021.