De três por cento o inferno está cheio por Aline Wendpap
Na coluna mensal “Sonora”, Aline Wendpap escreve sobre cinema e audiovisual, dedicando-se principalmente a tessitura de textos críticos, com ênfase na produção mato-grossense, nacional ou ainda latino-americana. O título da coluna visa brincar com a palavra, que tanto é ruído, quanto pode ser uma conversa ou um som bacana. Não deixa de ser uma homenagem ao som, característica vigorosa do cinema, além de se parecer foneticamente com Serena, nome de sua bebê. A coluna irá ao ar sempre no último domingo do mês.
Aline Wendpap é cuiabana “de tchapa e cruz”, nascida em 1983. Primeira Doutora em Estudos de Cultura Contemporânea pelo PPGECCO da UFMT, Mestre em Educação pela mesma Universidade, Bacharel em Comunicação Social – Habilitação: Radialismo (UFMT), integrou o Parágrafo Cerrado, coletivo dedicado a leituras de cenas de espetáculos. É autora do livro A Televisão sob olhar das crianças cuiabanas (2008, EdUFMT).
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3% (sérieFicção científica, de Pedro Aguilera, Brasil, Netflix 2016-2020, 33 episódios)
Por Aline Wendpap
Sabe quando você está procurando por uma série inebriante, que te prenda, mas ao mesmo tempo sem muita esperança de encontrar?! Foi numa situação como esta – em plena pandemia – que me deparei com 3%,primeira série brasileira a figurar no catálogo da Netflix, que liberou recentemente sua 4ª e última temporada e em determinado momento foi a série mais vista em outro idioma, sem ser inglês.
Fiquei vidrada na história, que se passa em um futuro não muito distante, na qual o planeta é um lugar devastado, dividido entre Continente (a parte paupérrima) e Maralto (a parte rica) e, em que todo cidadão com 20 anos, pode participar do “Processo”,seleção rigorosa(e eu diria também perigosa) para ascender ao Maralto. Porém, apenas 3% consegue chegar lá. Não parei até chegar ao último episódio (e já sentir nova falta do que assistir), concordo com meu filho Emanuel, que disse que: “os brasileiros sabem fazer uma série, que outros brasileiros gostem de assistir”, me senti muito contemplada.
Imediatamente após maratonar tive vontade de escrever sobre a série, por isso fui pesquisar, li e vi vários vídeos, de críticas a respeito. Porém, poucas discutem o conteúdo e as questões políticas e sociais contidos nela. Motivo esse pelo qual, achei pertinente a escritura de um texto, que ressaltasse tais aspectos.
A série, concebida por Pedro Aguilera, quando ainda estudante na USP, é considerada por alguns críticos, como “Jogos Vorazes” brasileiro, principalmente por conta da centralidade do “processo” para a trama, dirigida por César Charlone, DainaGiannecchini, Dani Libardi e Jotagá Crema. Possui bastante profundidade em todas as suas temporadas e a grande maioria das linhas narrativas abertas são fechadas até o final. E, embora haja falhas, os personagens complexos e cativantes prendem o público e a gente fecha um episódio sempre com borboletas no estômago, pensando sobre o que vai acontecer adiante.
Tais personagens são interpretados tanto por atores já conhecidos do grande público, como João Miguel (Ezequiel) e Bianca Comparato (Michele), quanto por novos rostos, como Vaneza Oliveira (Joana) e Rodolfo Valente (Rafael). A fotografia, especialmente da terceira temporada, é muito bonita, com enormes planos gerais de um deserto de areia. A trilha tem picos de excelência, como a cena do cortejo antes do processo, na segunda temporada e a da invasão da Concha, na terceira, ambas protagonizadas por Cynthia Senek, que interpretou magistralmente a Glória.
Bom, feito este panorama sobre alguns aspectos técnicos o que mais me impressionou foram as “provocações” como a divisão classista e meritocrática do mundo; a delicadeza com que foram tratadas as questões de raça e gênero, sem polemizações; mas principalmente pensar sobre os humanos e a humanidade, as relações familiares e, como vivenciamos essa pandemia, pensar sobre os motivos pelos quais se vale a pena viver. Foi tocante acompanhar a trajetória de Marcos, na minha opinião um dos personagens mais complexos, que foi desde o “filhinho de papai, nascido em berço de ouro”, que fazia de tudo para passar no processo, à um pai dedicado e filho saudoso, que procurou a ética nos escombros do continente para continuar sua jornada até o Maralto.
Também foi interessante pensar sobre como podemos ser viscerais, dependendo da situação na qual nos encontramos, dilema que aconteceu com praticamente todos os personagens.
Com tudo que acontecia no decorrer dos Processos (traições, trapaças, mortes, etc.) e também no cotidiano do Maralto (sensação de vigilância para impregnar medo, relações superficiais, futilidade, frugalidade, etc.), uma questão que eu sempre ficava pensando ao assistir era sobre como, na verdade, a vida era melhor no Continente, não no sentido material (porque lá não tinha comida, nem água suficientes para as pessoas, o que provocava a violência), mas com relação aos relacionamentos pessoais, vide as relações de Michele e seu irmão André, dos amigos Fernando e Glória, da família de Rafael e de Natália e Joana todos nutridos sob a escassez do Continente.
Enfim, fiquei muito feliz por ter tido contato com esta série e também que Pedro tenha tido a oportunidade de produzir sua ideia, porque nós é que saímos ganhando.
Carolina Neves Marcório
Bem depois desse panorama só nos resta assistir. Deu vontade ainda mais sabendo que é nacional.