De volta ao que sempre foi – Por Carla Cunha
Na coluna mensal “Teia Labirinto”, Carla Cunha escreve sobre Literatura Erótica e Pornográfica. O nome da coluna nos remete à trama e aos caminhos enrodilhados que todos nós enfrentamos ao pensar na própria sexualidade. Nessa trajetória, pontos se conectam e produzem uma teia de informações sobre quem somos. Porém, às vezes, não encontramos o caminho e a sensação é como se estivéssemos num Labirinto.
Carla Cunha é paulista, escritora de Literatura Erótica e Pornográfica, mantém um blog com textos sobre o tema e em 2019 lançou Vermelho Infinito.
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De volta ao que sempre foi
Duas horas e meia parada na auto estrada numa fila sem pressa de terminar. Aliás, quando chegamos aqui não se via o último carro na BR-101. Seja como for, nada vai tirar meu foco, quero sol, areia, caipirinha de caju, marca de biquíni na bunda, talvez uma aula de surf, na praia do Campeche, e uma foto na rabeta da prancha, tirando onda no Instagram e tomando like dos que se dizem meus amigos. Na bolsa térmica, a água de coco pela metade, dois litros de água pura, dois lanches naturais e três marcas de bolachas diferentes para aguentar a tranqueira de carros com previsão de doze horas de atraso. Floripa é bem isso, bonita pacas, mas se não valorizar o primeiro banho de mar ao chegar na ilha, o cara desiste só em pensar no trânsito. E o povo da tranqueira larga mão de ser educado, coloca sonzeira pirada a todo volume, desce com cerveja na mão e ignora por completa a blitz da polícia. Tem até mulher com roupa de banho em pleno asfalto, nas nóias de dançar um tipo meio tcha tcha tcha, meio funkeira arrepia coxa. Sei lá! Se venho é por causa do Quipa, que depois de passar quase dois anos trancado no apartamento da Lopes Chaves, vacinou contra o vírus e acha que pode tudo. Não só ele, parece que São Paulo inteira resolveu vazar. Vazar é bem o termo, ninguém aguentava mais, aqui a verdade. Confesso que penso mesmo em dois motivos para entrar nessa. O primeiro é meu Instagram. Depois de tirar mil fotos do gatinho e eu, dos pratos feito por mim e eu, do vaso costela de Adão e eu, da begônia maculada e eu, imagina o estardalhaço de um registro do meu corpinho à beira-mar com o sol castigando a pele, e depois os stories repleto de imagens da curtição. É para mais de mil visualizações. Entende? Mas deixa eu falar a real, vim também por causa do sexo com o Quipa. Imagina você, passar dez dias sem nenhum terê-terê com o vizinho. Não dá, literalmente, não. Enfrento tranqueira em Santa Catarina, e pronto. Agora, é de perder o ânimo ficar dentro do carro, no ar condicionado, escutar na repetição o álbum do Jack Johnson, encarar uma Lady Gaga, falar das aventuras sexuais da adolescência, masturbar para ele me ver, chupar o Quipa duas três vezes na neura de ser pega, ou do freio não segurar o carro e, num descuido, ainda provocar acidente na BR. Caralho, são mais de três horas e meia e andamos menos de um quilômetro. Take easy, pois, o importante é o sexo dentro do mar, entende? Nem quis falar para Quipa que seria minha primeira vez na praia. Faço o tipo descolada, que em termos de transa, já fez tudo nessa vida, mas a verdade que minha vida sexual se restringe ao sexo dentro do apartamento ou no máximo na sacada, raramente numa calçada da Lopes Chaves, perto da padaria, e em algum banheiro de bar pela Barra Funda mesmo. Quipa não faz ideia, sou boa de contar histórias, aí invento as tretas eróticas. Teve um dia que no meio da nossa transa, falei ao ouvido que chupei a bocetinha da Vanessa, mulher do Luis e bonita pacas, no telhado de um edifício no centro de Sampa. Mentira, pois! Mas ele gozou rapidinho. Contei de uma transa em alto-mar na Ilha Margarita, com peixinho mordendo minhas nádegas e fazendo cócegas no clitóris. Nunca estive no Caribe, pois. Ele acredita e goza. E eu vou criando a fama de mulher furacão e dou risada, pois. Agora, uma coisa é certa, não sei o que de maluco sexualmente posso fazer dentro de um carro, em meio a uma estrada com gente desesperada dando uma festa ao lado dos carros, num sol de quarenta graus lá fora com pouca comida disponível aqui dentro. Mais de quatro horas e meia e o Jack Johnson parecia de mal humor na sequência dos refrãos. Coloco numa estação de rádio e o locutor avisa do acidente na 101, um caminhão de combustível chocou com caminhão de frango e a equipe de resgate dos bombeiros e a polícia civil tentava limpar a pista. Não deu para entender direito se o resgate era para recuperar os frangos ou o motorista. Desliguei o som e permanecemos calados a observar o movimento na rua. Seja como for, tínhamos que fazer alguma coisa, ainda parados, o tesão parecia tomar rumo ao contrário, e voltar para casa. Não! Não volto para casa sem a foto na praia e o sexo em alto-mar. Agora vamos até as últimas consequências. Cinco horas e meia de espera, sem avançar nem quinhentos metros. Impossível manter o apetite sexual. Quipa mostrava-se impaciente, o que para mim não fazia sentido, já que sabíamos da demora e ele tinha gozado três vezes. Deveria estar calmo. Sete horas e meia e a gente ainda parado. Quando a espera marcou mais de dez horas, ele sugeriu deixar o carro e dar uma volta pela estrada, esticar as pernas, conversar com o pessoal. É o que tem, concluiu. Então, descemos. Andamos, um pouco. Umas meninas de roupa de praia cantavam a todo volume uma música sertaneja. Não paramos, mais adiante, um casal desenxavido, encostado na caminhonete, de braços cruzados, espiava o que acontecia lá na frente. Aí já passava das seis horas da tarde, mais de doze horas de espera, e o sol descia em fúria no horizonte. Aquilo tudo era engraçado, as coisas permaneciam como antes, no tempo da pandemia. Doze horas de espera na BR não era muito diferente de dois anos trancado dentro no apartamento. Enfim, puxamos assunto com o casal. Eles eram de São Paulo e queriam praia, banho de mar, caipirinha; ela até comentou de uma aula de surf na praia do Campeche, pois. Conexão. Conversamos por mais de uma hora, ofereceram biscoitinhos recheados, vodka com guaraná e uma música bossa nova. Por fim, chegamos as treze horas de espera sem previsão de chegar em Florianópolis tão cedo. O dia finalizava no horizonte de carros, e o papo com o casal não encerrava. De uma hora para outra, as coisas mudaram e a nossa frente o fluxo se deu muito devagar. Avançaríamos um pouco, e nós precisávamos voltar ao nosso carro, uns duzentos metros, para acompanhar o deslocamento. Em consenso, foi resolvido que nós duas iriamos juntas até o carro para não interromper a conversa. Foi assim, que transei com Clarice na BR-101, mas a história aqui é outra e muito menos travada que as tentativas da pós-pandemia.