Decolonizando a covid-19, um ensaio poético de Davi Silistino
Davi Silistino de Souza nasceu em São José do Rio Preto-SP em 1993. Graduado em Licenciatura em Letras com habilitação em inglês e francês pela UNESP em São José do Rio Preto-SP. Mestre na área da Teoria Literária e doutorando em Letras também pela UNESP de São José do Rio Preto-SP. Durante dois anos ministrou a disciplina Literatura, Gênero e Raça em conjunto com Cláudia Maria Ceneviva Nigro, Fernando Luís de Morais e Marco Aurelio Barsanelli de Almeida. Atualmente participa do Grupo de Pesquisa Gênero e Raça, desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão na universidade e na comunidade.
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Decolonizando a covid-19
Estamos enfrentando uma das maiores catástrofes em termos epidemiológicos, a partir da qual oficialmente contabiliza-se mais de um milhão de mortes ao redor do mundo. Ao mesmo tempo, a tecnologia avança de forma tão rápida que estamos em contato com a realidade instantânea de cada país, inclusive com a violência policial, cujos alvos são as pessoas negras, seja no contexto nacional, como no caso de Beto Freitas, seja no contexto internacional, assim como visto no assassinato de George Floyd e Breonna Taylor. A indignação suscitada nos mostra uma transformação positiva em direção ao enfrentamento a uma sociedade injusta. No entanto, é inegável que algumas das estruturas que sustentam opressões e hierarquias permaneçam as mesmas nas sociedades, em algumas mais do que em outras.
À princípio, a pandemia de covid-19, chega ao Brasil a partir de pessoas da elite, em grande parte brasileiros retornando de viagens dos continentes europeu e asiático. A maioria dos primeiros infectados foi curada devido ao acesso mais facilitado ao sistema privado de saúde. No entanto, com o tempo e o despreparo de algumas autoridades públicas brasileiras, a pandemia se alastrou pelo país e hoje a situação encontra-se transformada. Se, no início, as pessoas contaminadas e mortas pelo vírus eram provenientes de classes mais abastadas e de uma etnia branca, vemos agora um alastramento em classes menos abastadas e de etnia negra, contando inclusive com um índice ainda mais alto de mortalidade. Muitos sustentam o mito de que a covid-19 é uma doença universal, que afeta a todos igualmente, sem restrições ou direcionamentos. Esse nada mais é do que um pensamento falacioso dentre as diversas falácias propagas inclusive por indivíduos do poder público federal.
Tal mito nos faz invariavelmente remeter a outras tantas ideias que buscam homogeneizar e universalizar algo que simplesmente não é capaz de ser universalizado. O primeiro deles é a hybris do ponto zero, a qual trata da crença no mito de que existiria um marco inicial para o conhecimento e a epistemologia de um modo geral, o qual seria eurocêntrico. Castro-Gómez afirma que a tentativa de estabelecer um marco inicial do conhecimento humano, provindo de uma idealização de Descartes, é incoerente, pois, ao definir esse ponto, há o silenciamento de toda a teorização, dos ensinamentos e dos conhecimentos produzidos anteriormente, grande parte provindos de países do Sul-Global. Assim, a tentativa de universalização de um conhecimento europeu em detrimento da produção teórica subalterna é algo a ser combatido por estudiosos pós-coloniais na contemporaneidade.
Outro pensamento igualmente raso, sustentado em uma universalização, é o conceito de que todos os seres humanos são iguais e, portanto, devem ser tratados de forma igualitária. Essa ideia faz-se representada no slogan do “todas vidas importam”, criado como provocação e embate direto ao “vidas negras importam”. Enquanto o segundo defende a importância da vida dos negros e a necessidade de desestruturar o racismo histórico, o primeiro traz a posição de que as reivindicações dos negros são privilégios, de modo que todos devam ser tratados de forma “igual”. Efetivamente, implícito nesse discurso, há a defesa da manutenção de estruturas racistas na sociedade, ao contrário de seu combate.
Dessa maneira, é muito difícil não questionar o argumento de que a pandemia atual afeta todos de forma igualitária. Sabemos, baseados em pesquisas feitas nos meses em que passaram, do efeito específico da doença em grupos também particulares – não por alguma característica da doença em si, mas por fatores sociais e políticos. A população negra no Brasil é a mais atingida, de forma que apresenta, inclusive, uma porcentagem de mortes mais elevada, pois essa população, em grande parte, vive em condições mais precárias, com saneamento básico deficitário e aglomerações em moradias, além da necessidade de se deslocar longas distâncias a trabalho.
É, de fato, impactante analisar o significado da morte de George Floyd. As súplicas e verbalizações indicando a falta de ar, devido ao sufocamento provocado por um policial em Minneapolis, Minnesota, traz um paralelo com a pandemia. Assim como a morte de Beto Freitas em Porto Alegre, esses atos violentos contra corpos negros não são casos localizados ou minoritários; pelo contrário, são constantes e estruturais. A população negra morre asfixiada devido às desigualdades amplificadas com o vírus, mas também resultado de um racismo crônico institucionalizado. Sentimos os reflexos de uma sociedade repleta de opressões por meio do direcionamento da violência policial aos negros e da gravidade dos efeitos da covid-19 em populações mais vulneráveis.
A respeito dessa rede de opressões, Ramón Grosfoguel, um dos representantes do Grupo de Estudos Subalternos latinos, traz o conceito da colonialidade do poder como sendo um conjunto de hierarquias e opressões intrínsecas às relações sociais e culturais estabelecidas nos países colônia e colonizados. Por meio desse conceito, o pesquisador mostra que essas estruturas, provenientes do período colonial, não foram extintas. Pelo contrário, uma variada gama de heterarquias, isto é, hierarquias globais de poder, ainda persistem, sistematizando as opressões. Temos, por exemplo, a hierarquia étnico-racial, discriminando os indivíduos não-europeus a partir, principalmente, do fenótipo; a hierarquia patriarcal, priorizando o homem a despeito da mulher; a hierarquia sexual, beneficiando os heterossexuais e relegando as diversas identidades de gênero a um segundo plano; entre outras.
A partir do vocábulo “colonialidade”, poderia-se, em uma leitura rápida e desatenta, considerar a limitação desse conceito ao período colonial, o qual há muito tempo já foi oficialmente extinto. No entanto, para os estudiosos latinos, a colonialidade do poder permanece, carregando uma rede de opressões e subjugações. Devido a isso, há a defesa da decolonialidade, isto é, um combate direto a essas hierarquias provenientes da colonização. E uma das maneiras de desenvolver a decolonialidade é por meio do conceito de giro decolonial. Compreende-se giro ou virada decolonial como a busca, recuperação e valorização da voz de subalternos, os quais foram esquecidos pela visão eurocêntrica do saber.
Retomando as críticas de Castro-Gómez, o mito da existência de um ponto zero nas epistemologias ocasiona em um apagamento das ideias e das construções conceituais de pensadores que fogem da cultura eurocêntrica. O giro decolonial nos auxilia a perceber como o conhecimento adquirido é fundamentado, em grande parte, em autores ocidentais/europeus, além de trazer o seguinte questionamento: por que não recuperar os conceitos e as produções dos estudiosos e autores subalternos?
Partindo da perspectiva que enxerga a literatura como vida, isto é, refletindo, retratando e questionando as mais diversas formas de representações e relações sociais, pode-se estabelecer aproximações entre as obras literárias e a abordagem decolonial, permitindo uma abertura críticas às opressões vivenciadas hoje, como, por exemplo, os reflexos da desigualdade nos efeitos da Covid-19. De fato, a escrita literária nos aproxima de realidades diversas, dando espaço para indivíduos subalternos falarem. A respeito disso, trazemos o poema “kafkiano”, de Fernando Luís de Morais, o qual nos coloca em contato com vozes que sofrem com os efeitos da nova realidade da pandemia, mas ainda assim sobrevivem.
Apresentamos a seguir o poema na íntegra:
kafkiano
o mundo está submerso
no mais profundo
de um permanente pesadelo,
um labirinto de Dédalo,
onde saídas não há.
o mundo está submerso
no mais permanente
de um profundo pesadelo
de desespero e desesperança,
onde curas são incertas.
o mundo está submerso
no pesadelo
mais profundo e permanente
sob o peso da perda
de milhares de existências.
o mundo está submerso
no mais profundo
de um permanente pesadelo
de vidas esfaceladas,
fragmentadas famílias arrasadas.
o mundo está submerso
no mais permanente
de um profundo pesadelo
em luto eterno,
em preto terno.
o mundo está submerso
no pesadelo
mais profundo e permanente
e, nas profundezas desse pesadelo,
o mundo se consome.
Vemos nesse poema o eu-lírico utilizando-se, em cada uma das estrofes, da repetição dos versos “o mundo está submerso/no mais profundo/de um permanente pesadelo”, ainda que em composições e ordenamentos distintos. Ecoa-se a preocupação dessa voz, que, em vista da dificuldade de visualizar uma possibilidade de cura para a covid-19, manifesta um crescente desespero. De fato, uma das “curas” vislumbradas é a cloroquina, de cuja eficácia grandes corporações e figuras do alto escalão do governo federal tentam nos convencer, embora ainda não haja nenhum estudo comprovatório fidedigno. Para eles, o lucro e a vitória política estão acima do bem-estar da população.
No poema, ouvimos o eu-lírico verbalizando uma dor intensa causada pela magnitude de mortes, pela incerteza do que vai acontecer no futuro próximo e pelo luto voltado a vidas perdidas, em sua maioria de populações de classes mais baixas e negras. Entretanto, deparamo-nos com um verso positivo e esperançoso na quinta estrofe, em que há uma contraposição entre “luto eterno” e “preto terno”. Observamos, aqui, ao menos dois significados possíveis para o termo “preto”: como um símbolo da cor da vestimenta geralmente utilizada por pessoas durante funerais, e como representação da população preta, a qual é a mais atingida por essa crise. Em ambas as possibilidades, há uma faísca de positividade e esperança com o adjetivo “terno”, que, apesar de poder ser lido como substantivo (cujo significado é um traje formal), mostra o luto acompanhado pela ternura dos sobreviventes e também a população negra recorrendo a si mesma com afetividade e compaixão.
O final do poema é bem intrigante e, de certa forma, também carrega uma ambiguidade. Após retomar os versos relacionados ao pesadelo, fecha-se com o verso “o mundo se consome”. À primeira vista, o verbo “consumir” aparenta trazer um sentido mais negativo, relacionado à destruição e ao aniquilamento total. No entanto, não podemos deixar de sugerir a hipótese do verbo manifestar um significado reflexivo e cíclico, em que o fim da ação não se dá com a ruína e a desesperança, mas sim com um movimento transformador. O autoconsumo gera inevitavelmente um produto final distinto, resultado do sofrimento, mas também do enfrentamento do luto e da esperança advinda de redes de solidariedade repletas de ternura e carinho. O luto, ainda que pareça eterno, é necessário e positivo, ocasionando a elaboração da dor e, consequentemente, a superação e a sobrevivência.
Assim, por meio da arte e, em especial, da literatura, entramos em contato com vozes que sofrem por consequência de um sistema opressor e injusto, intensificado pelos efeitos da pandemia. A violência policial contra os negros e os efeitos catastróficos do vírus em populações vulneráveis intensifica a repulsa e a indignação com relação a manutenção dessas heterarquias. Em meio a situações conflituosas entre países e desastres ambientais, como a covid-19 e as queimadas criminosas no Pantanal e na floresta amazônica, prezamos pelas vidas dos subalternos, afetados por estarem na base dessas hierarquias globais, sejam eles negros, indígenas, de classe social baixa, mulheres, LGBTQI+ etc.
Retomando, desse modo, o raciocínio colocado no início, as transformações sociais, culturais, políticas e econômicas nada mais fazem do que evidenciar as desigualdades e as formas de opressão, as quais não surgiram em 2020 ou há dois anos atrás, mas sim são um resultado de um longo percurso histórico. E esse caminho de exploração só será rompido quando efetivamente tomarmos frente a um movimento decolonial, assumindo posicionamentos e ações antirracistas, antipatriarcais, antilgbtfóbicas, entre outras. Um rompimento efetivo com as estruturas coloniais e um caminho rumo a um mundo sem binarismos e essencialismos se fazem imprescindíveis, estando mais que na hora de darmos um basta na perpetuação desses sistemas. É hora desierarquizar a sociedade. É hora de decolonizar.