Dialetos angolanos são marca ideológica em seu texto, diz Pepetela
Por Rodivaldo Ribeiro
O escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana dos Santos, o Pepetela (tradução de Pestana para um dos idiomas africanos de Angola), tem 78 anos e é reconhecido como dos maiores em língua portuguesa vivos no mundo.
Ainda que nunca tenha sido formalmente indicado ao Nobel, vários escritores e literatos consideram sua obra suficiente para isso.
A biografia deste hoje senhor franzino, por volta de 1,70m, parece pouco combinar com seu jeito sereno, de sorriso fácil e olhos tristes. Quase nada em sua figura lembra o ex-guerrilheiro do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) em fins dos anos 1960, a não ser exatamente o olhar afável sob a farda do MPLA visto em uma foto da época e repetido à reportagem ante o aperto de mão e a apresentação para a entrevista, no ano de 2017, quando esteve em Cuiabá para participar de uma feira litearária.
Bastante à vontade, o mestre falou sobre sua relação com outros gigantes da literatura, como Mia Couto, Antonio Lobo Antunes, John M. Coetzee e Chimamanda Ngozi Adichie. Hoje, Pepetela é professor de sociologia na Faculdade de Arquitectura da Universidade Agostinho Neto, em Luanda.
O senhor certa vez disse ser mais influenciado (ao menos no começo da vida literária, na infância) por autores brasileiros como José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Jorge Amado e Érico Veríssimo. Todos eles tem personagens ambientados em regiões carregadas com fortes traços de certas cicatrizes coloniais ou de conflito. Já pensou no porquê disso?
Sim. E não era só eu. Todos meus amigos ainda em infância liam escritores brasileiros. Primeiro porque eles eram mais acessíveis que os portugueses, eles chegavam em Angola quando éramos pequenos. Depois é que os temas, especialmente em Graciliano e Jorge Amado, mostravam certas semelhanças com a vida na nossa terra. Traços dessas cicatrizes e conflitos por ti citados. Mas ainda antes de me atentar pra isso, eu gostava muito de José Lins do Rego e aprendi depois a ver a beleza do trabalho de Érico Veríssimo, realmente monumental.
Gosto de pensar que os maiores sonhos se renovam com o tempo. Alguns morrem somente para nascerem outros, assim como as aspirações na vida de cada um
A opção pelo uso da língua falada em Angola pelos de lá nativos foi mera opção estética ou foi assumidamente ideológica, como resistência ao aculturamento português?
Primeiro foi opção ideológica mesmo, uma maneira de nos colocarmos no mundo da maneira como nos entendíamos, porque o português falado em Angola, Moçambique, Timor, Cabo Verde não é o mesmo português falado em Portugal, que por sua vez também não é bem o português falado no Brasil. Havia esse traço de identificação e resistência de início, de afirmação de uma identidade. Mas também era uma opção estética. Digamos ser opção estética e ideológica ao mesmo tempo, pois as coisas caminhavam juntas.
Um caminhar por uma feitura literária fortemente pautado na oralidade, não?
Sim, com muitos traços da maneira muito própria como os africanos expressam uma língua europeia, do colonizador, no meio de falares mais antigos e ancestrais.
Não há um pouco de contradição nisso, sendo o senhor branco e de família portuguesa e, até onde se sabe, educado em Portugal?
Não vejo contradição no fato de ser branco porque minha família é africana de várias gerações e eu mesmo nasci em Angola. A família de minha mãe é de origem pernambucana. Ademais, para os portugueses e os colonos, nem eu nem minha família jamais fomos vistos ou tratados como brancos ou europeus. Passávamos por praticamente o mesmo tipo de discriminação dos demais angolanos, de modo que eu achei muito natural me juntar ao restante da população a lutar por independência e o fim do jugo português.
Há espaço para ser comunista ainda nos dias de hoje?
Depende do que pensas ou entende ser comunista, pois as palavras mudam de sentido conforme seu tempo de uso. A exemplo, a China, chamada de comunista mas de sistema de governo, controle e produção plenamente capitalista, inclusive com o que de pior há no sistema liberal: a exploração maciça dos mais pobres e o enriquecimento das elites, hoje formadas pelos diretores do assim chamado partido comunista. A palavra comunista nos dias de hoje nada tem a ver com uma ideia de comunismo clássico, criada por Marx e nem mesmo com o que fora a Rússia da revolução de 17 e a União Soviética. Talvez eu possa ser classificado até mesmo como anarquista, se isso significar ser contra os sistemas liberais de governo, mas também ser contrário às perdas de liberdades individuais no que se convencionou chamar de países socialistas ou comunistas. Assim, se no meio de todas as ressalvas e distinções se puder pensar num mundo onde a maioria de pobres não seja explorada por uma minoria de ricos, talvez eu ainda possa ser classificado como comunista, socialista, anarquista. A depender de como cada um entende essas definições. Digamos que eu seja um comunista pós marxista (risos).
Sou muitíssimo amigo de Lobo Antunes, estamos juntos sempre que podemos. Conversamos, bebemos. Há pouco tempo ele me contou que saiu de um hospital bombardeado por nós (da MPLA) algumas horas antes de atacarmos. E nós fomos para destruir e arrebentar com tudo. Por pouco não matamos Lobo Antunes, o que seria um crime imperdoável contra a literatura mundial e em especial a feita em língua portuguesa.
Desde o Dom Quixote não é o destino de todos ver morrerem as aspirações, sonhos e ideais?
Gosto de pensar que os maiores sonhos se renovam com o tempo. Alguns morrem somente para nascerem outros, assim como as aspirações na vida de cada um. Os ideais não necessariamente morrem ao passar do tempo, obrigatoriamente, mas talvez se adaptem ao momento pessoal e infinito das existências. Começamos a buscar o melhor, mas passamos a aceitar o possível. É o único sentido de utopia: buscamos o ideal para almejar e tentar conseguir o melhor possível.
Mas não foi esse desencanto que alimentou a escrita de Geração da Utopia?
De certa forma, mas foi muito mais perceber o desejo comum inicial de buscar, além da independência, uma sociedade mais justa, mais igualitária, a se perder em coisas lamentáveis e execráveis como corrupção e ambição financeira. Em todo lugar, na igreja, na qual nunca acreditei muito, mas, muito pior, entre os então companheiros de luta armada ao assumirem posições no que deveria ser um novo meio de conduzir os rumos do país, mas não era. Entretanto, prefiro manter em memória o ideal de se buscar a perfeição para se conseguir o melhor possível. E isso foi conseguido na época da escrita de Geração da Utopia, a independência. Isso conseguimos.
A literatura o interessa enquanto projeto estético, artístico ou somente como expressão ideológica?
Não há como separar os três. Começa sempre como um projeto estético, de fruição de beleza e encantamento pelo mundo e por isso mesmo também artístico, posto que todo artista, seja qual for sua maneira, forma, de expressão sempre o começa por razões estéticas, de busca pelo belo, mas haverá de sofrer influência da vida que levou, do lugar onde se encontra no mundo e logo ideológica. A mim escrever sempre foi um ato estético, artístico e também de expressão de buscas políticas e ideológicas. Se não fosse assim, não haveria razão de ser.
Talvez eu possa ser classificado até mesmo como anarquista (…), se no meio de todas as ressalvas e distinções se puder pensar num mundo onde a maioria de pobres não seja explorada por uma minoria de ricos, talvez eu ainda possa ser classificado como comunista, socialista, anarquista. A depender de como cada um entende essas definições. Digamos que eu seja um comunista pós marxista (risos)
O senhor tem contato com outros escritores africanos, como John M. Coetzee, Chimamanda Ngozi Adichie?
Não. Coetzee mudou-se de África do Sul para Austrália e não mais o vi desde então. Nunca encontrei com Chimamanda porque ela mora há muitos anos nos Estados Unidos e passa pouco tempo em Nigéria, onde também fui pouquíssimas vezes. Gostaria de ir mais, mas não o tenho feito.
Quais autores, brasileiros, angolanos ou portugueses, o senhor lê hoje em dia?
Eu não conheço os escritores brasileiros e angolanos da nova geração, confesso. Leio ainda hoje os antigos, Jorge Amado, Graciliano, Machado, Eça de Queirós, alguns anteriores e os angolanos da minha geração.
O que acha de Lobo Antunes e de Mia Couto? Mantém contato com eles?
Sou muitíssimo amigo de Lobo Antunes, estamos juntos sempre que podemos. Conversamos, bebemos. Há pouco tempo ele me contou que saiu de um hospital bombardeado por nós (da MPLA) algumas horas antes de atacarmos. E nós fomos para destruir e arrebentar com tudo. Por pouco não matamos Lobo Antunes, o que seria um crime imperdoável contra a literatura mundial e em especial a feita em língua portuguesa. Mia Couto eu conheço há muitos anos. Fomos apresentados quando ele ainda não escrevia romances, só poesia, e sempre nos demos muito bem. Não o vejo há alguns anos, mas temos uma relação cordial, amigável.
Achei que esta seria a pergunta bomba da entrevista, pelo fato de os dois serem vistos por alguns como mais conservadores que o senhor…
De maneira alguma, me dou muito bem com ambos. Sua pergunta bomba foi desarmada, caiu por terra (risos).
E o senhor conhece John Bella, José Luiz Mendonça e José Luiz Tavares?
Sim, conheço John Bella. José Luiz Mendonça é do meu convívio. Como disse antes, é de uma geração mais próxima, da última a qual conheço. Não conhecia José Luís Tavares.
Ele é de Cabo Verde. Escreve poesia.
Vou procurar conhecer mais brevemente possível.
Ricardo Carranza
Excelente matéria.