Diário de luto – Por Vinícius da Silva
No laboratório do tempo, coluna assinada por Vinícius da Silva, as coisas não são o que realmente são (ou que pensamos ser); os sonhos deixam de ser sonhos e passam a ser partes da vida. Nesta coluna, quinzenalmente, Vinícius escreverá a partir da interface entre artes visuais, filosofia e literatura, buscando realizar isto que o escritor chama de “experimentos” (ora textos ensaísticos, ora poemas longos) sobre tempo, esquecimento, futuro, e outros experimentos possíveis para o laboratório do tempo. Nesses encontros, Vinícius mais suscitará questões do que tentará respondê-las, pois é dessa forma que o pensamento atinge o seu nível ótimo de curiosidade para conhecer e acessar as coisas. No entanto, o laboratório do tempo nos desafia a esquecer de tudo, menos de quem somos ou de nossos simulacros; você aceita o desafio?
Vinícius da Silva. Graduando em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas na Escola de Belas Artes (EBA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2020, da Silva apresenta o Podcast Outro Amanhã, ministra cursos livres sobre o pensamento de bell hooks, Teoria Queer, entre outros temas de pesquisa, e é revisor e atua no setor de Pesquisa Qualitativa da ONG TODXS. Possui experiência e interesse de pesquisa nas seguintes áreas: Filosofia Política, Teoria Queer, Arte Contemporânea, Poéticas Visuais, Teoria Feminista Negra e Artes Plásticas. Site: https://www.viniciuxdasilva.com.br/
***
Palavra contra palavra: Diário do luto
Dia 1
Durante o luto, você acorda às 6h30 no dia seguinte após ter uma crise de choro no início da madrugada e reza aos deuses para que se mantenha de pé. Ir à cozinha, colocar água no fogo para fazer café, ir ao banheiro checar se a ansiedade não deixou marcas de unha na sua pele e agradecer por não, o que evitaria algumas perguntas. Em seguida, preparar uma xícara cheia de café bem forte torcendo para que a próxima noite seja melhor dormida.
E então, sim, você chega ao quarto, abre o computador e começa a escrever algumas palavras para que essa mísera experiência do real faça algum sentido, cinco minutos antes da sua primeira aula do dia. É preciso se recompor, pois o tempo linear é anti-luto.
Antes disso, escrever mais. Escrever poemas. Escrever fragmentos. Escrever diário. Apenas escrever para que as palavras sejam ditas, mesmo que de forma ridícula, mesmo que de forma tão assustadora quanto a notícia que chega no dia anterior, através de tua mãe, com uma voz embargada de choro. O mesmo choro, porém, no teu caso chega apenas à madrugada, através de uma crise silenciosa e dolorida, sem muito sentido, mas com uma sensação imensa de que algo se rasgou.
Dia 0
Como pode não mais existir um corpo que por tanto tempo habitou a terra? É inconcebível lidar com a morte, a pior experiência do real. E muitas pessoas morrem de muitas formas em nossas vidas. Eu me recuso a ser o mensageiro da passagem, todas as mortes são impossíveis de anunciar. Ela morreu no mesmo dia que o filho. Terça-feira. Até hoje as palavras que anunciam a morte ecoam. E talvez precisemos de um tempo, de um afastamento. Porque não há como entender. Como é possível que não esteja mais alguém que esteve aqui por tanto tempo? A quem fica resta o silêncio.
Dia -1
No dia seguinte, chove muito, a temperatura sempre cai, outras pessoas fazem aniversário, ciclos terminam e novos começam. O luto não é só uma experiência relacionada à morte. O luto é uma experiência do vazio, da ausência, do que deixa de estar. O luto é uma experiência para quem fica. Ao contrário da ciclicidade dos nossos ciclos, o luto é o que acontece quando um desses ciclos é rompido de forma brusca e inesperada. O luto é uma experiência que te rasga.
Dia -2
“after slow death/ love must clean house/ choose memories to keep/ and memories to let go/ give each lamentation/ an ear to hear/ a heart to lay rest/ let no soul forget/ an eternity of desire awaits” (bell hooks, when angels speak of love, p. 23)
Dia -3
Buscar nas paredes de casa, nas folhas já escritas, nos pulsos que agora sangram, uma justificativa para a dor e perceber que o real te rasga e te parte para que você esteja em todo lugar e em nenhum lugar ao mesmo tempo.
Dia -4
É estranho, de alguma forma, pensar que ela faleceu no mesmo dia do filho e talvez isso signifique que agora eles poderão, finalmente, após 9 anos, 2 meses e 2 dias, se reencontrar.
Dia -5
O medo de perder alguém é maior do que o medo da própria morte, pois dolorosamente corremos o risco de entender que a morte faz parte da vida.
Dia -6
a quem fica/ resta preparar o pão/ conduzir os familiares até a capela/ rezar e lamentar comunitariamente/ escrever mensagens noticiando/ quem fica/ deve chorar muito/ sentir o luto por dias semanas meses/ postar algo nas redes em memória de quem se foi/ escrever algo como este poema/ que é um poema sobre/ quem fica/ deve enfim preparar o corpo/ e a celebração para a alma que se vai/ para o corpo que deixa de ser matéria/ a nós/ resta apenas/ a constante/ lembrança/ de que a morte/ faz parte da vida. (27 de julho de 2021)
Dia -7
Machucar-se para certificar que ainda há sangue, carne e humanidade. Quebrar um copo e analisar as diferenças entre um caco de vidro e um bisturi, mas sem mastigar os cacos para separar na boca o gosto do sangue do gosto do sabão. Quando o sangue secar, deitar e dormir.
Dia -8
Estar ainda perplexa na busca de uma linguagem que dê conta. Perceber que essa linguagem não existe. Talvez por ainda não ter sido criada, mas certamente porque a experiência do luto parece incontornável.
Dia -9
“Réunion trop nombreuse. Futilité croissante, inévitable. Je pense à elle, qui est à côté. Tout craque. C’est, ici, le début solennel du grand, du long deuil. Pour la première fois depuis deux jours, idée acceptable de ma propre mort.” (roland barthes, journal de deuil, 27 octobre 1977)
Dia 3
Escrever compulsivamente para suportar os dias que ainda virão.