Dois contos de André Mellagi
André Mellagi nasceu em São Paulo, é psicólogo e escritor. Lançou em 2017 seu primeiro livro de contos, Bricabraque, pela editora Patuá. Participou de coletâneas e publicações literárias online e impressas, tais como a revista Gueto, Diversos Afins, Mallarmargens, Literatura & Fechadura, O Último Leitor Morreu, revista Subversa, revista Bacanal. Foi aluno do Curso Livre de Preparação do Escritor (CLIPE), pela Casa das Rosas (SP), em 2018. Vencedor do 31º Concurso de Contos “Cidade de Araçatuba”, em 2018, com o conto “Anamnese”, e finalista do Prêmio Off-Flip de Literatura de 2019 com o conto “Interfaces”.
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ESTAREI AQUI
Não percebeu entrarem no quarto até levar um tapa na cara.
– Ainda está aqui?
Duas horas e quinze da manhã e ela procurou às cegas a sua mão. Tateava entre os lençóis revoltos uma âncora que a resgatasse de um pesadelo. Enfim, encontrou a mão dele que alisava seus cabelos náufragos no suor.
Acordou assustado e respondeu por reflexo.
– Não sei de nada!
A porta rangeu até se fechar. Silêncio. Apesar dos hematomas fecharem-lhe as pálpebras, sabia que estava sozinho novamente. Não importa. Habituava-se à escuridão do quarto, mas cada soco no rosto e paulada nas costas revigorava uma dor inédita. As noites costumavam ser menos solitárias. Adaptava as porções de um livro de receitas para dois. Mesmo assim sobrava, pois ela comia pouco. Tudo bem, amanhã teria o almoço garantido. O cheiro azedo voltou a preencher suas narinas. Escorregava entre os restos de comida e merda espalhados no chão. Receber mais um jato de água fria seria uma bênção. Ela lhe massageava as costas com o sabonete e somente ela poderia lavar seus cabelos. Achava desnecessário, não entendia a importância desse ritual sempre que tomavam banho juntos. Levantou a cabeça e tentou se acomodar sobre os joelhos lascados. Tinha as mãos atadas e penduradas na corrente que descia do teto e procurava dormir sobre o calcanhar. Se ficasse em pé, saía de sua genuflexão e as mãos permaneciam amarradas, unidas e suplicantes como numa oração. Um dia ela lhe perguntou se acreditava em Deus.
– Juro, não sei de nada!
Mas ele o viu. Na saída do apartamento dela, esperava o elevador enquanto sorria uma lembrança exalando na ponta dos dedos. Entrou no elevador carregando um pacote e viu um homem magro com veias salientes nos braços. Nunca o tinha visto antes. Não se cumprimentaram. Notou a respiração do estranho homem um pouco ofegante. Saíram do prédio juntos.
– Você estava ali com ele! Vimos vocês saírem do prédio!
Foi numa farmácia onde se conheceram. Procurava por creme de barbear e pelos olhos fugitivos dela. Ela deixou o pacote no balcão do caixa, saiu satisfeita em só levar o troco da compra. Ele a alcançou e entregou o pacote esquecido com um sorriso de brinde. Jamais perguntou o que havia dentro. Ela voltou à farmácia dois dias depois. Ele estava ali, ofereceu-lhe outro sorriso, com a barba maior. Também se esquecera de comprar o creme de barbear no dia em que se conheceram. Já não se preocupava em fazer a barba. A navalha inaugurou novas cicatrizes pelo corpo. Rasparam-lhe os cabelos com fúria, após arrancá-los com as mãos.
– Onde deixou o pacote?
Uma manhã ele abriu uma gaveta do banheiro e quis uma lâmina. Detalhes rosa, não faz mal… toda mulher tinha uma. Achou um pacote com o logotipo da farmácia. Abriu. Tinha que se certificar. Vasculhou a escrivaninha à noite enquanto ela dormia. Achou um carimbo com identificação de um médico e blocos de receituário com nomes de barbitúricos. Os pesadelos dela aumentavam. Passou a estar ali, com ela, todas as noites. Não mencionou o que achou, pois sabia que tudo acabaria.
– Já disse que não sei!
– E o que é isso que estava no seu bolso?
Mostraram na sua frente, assim que chegou naquele quarto, o pacote de barbitúricos que ele havia decidido jogar fora. Não iria adiantar, ela sempre voltaria àquela farmácia e mesmo que a acompanhasse com a desculpa de buscar lâminas e cremes de barbear, diria que para certas coisas queria privacidade, escondendo caixas de remédios em meio a absorventes.
– Nosso amigo Sanguinho é um viciado como você. Sempre faz merda quando se liga no que vende. Fica arrumando outros compadres pra fazer negócio paralelo e depois quer dar uma de boa.
Naquela noite eles jantaram mais tarde. Conversaram sobre tratamento, ajuda médica, ele decidiu levar todos aqueles comprimidos pela manhã e sumir com eles, mesmo que ela passasse a manhã vasculhando latas de lixo. Ela sabia que não iria se livrar dos pesadelos, mas iria tentar. Ela o desejou dentro de si. Antes de dormir, ela quis ouvir dele que ainda estaria ali na noite seguinte. Não se pode mesmo confiar em ninguém.
*
PING PONG
Cláudio pincela com a toalha uma faixa de espelho sobre a superfície embaçada que Rita aproveita uma fresta de reflexo para atravessar um brinco de argola na orelha, estica o pescoço e o perfume lírio stargazer de Rita se mistura com o tutti-frutti do dentifrício que Cláudio introjeta na boca, Rita deixa cair o outro brinco de argola que Cláudio apanha fazendo um bambolê com o indicador, Rita mostra a língua e ajuda a estrangular Cláudio com o nó da gravata, Cláudio envolve Rita com o xale de pashimina e a puxa para sua boca, tutti-frutti com lírio, Cláudio procura a língua de Rita que procura o corpo de Cláudio que procura entrar em Rita, mais 15 minutos e o trânsito vai piorar, Rita se repenteia e Cláudio se estrangula sozinho com outra gravata, Rita despeja uma ração no prato do gato que se espalha no chão, Cláudio vai ter que deixar o café para mais tarde, Illustrated History of the British Monarchy de Rita, estetoscópio de Cláudio, chave da moto, chave do carro, bom dia, bom dia, o trânsito estava horrível por causa de algum acidente, o cheiro de alguma flor exótica diminuía na camisa de Cláudio, o gosto de chiclete que se esgota na boca de Rita, fratura na segunda falange média onde rodopia o brinco de Rita, genealogia do nó da Casa de Windsor desfeito na gravata de Cláudio, a gata da diretora deu cria e Rita pestaneja mas com a certeza de que Cláudio não vai gostar, a máquina que ronrona ao expelir café num copo e Cláudio não admite que faz cafuné no gato de Rita, a tarde esfria e mais um café na falta do xale de Rita, o dia escurece e Rita não vê o reflexo de Cláudio ao retocar a maquiagem no retrovisor.
– Como foi seu dia?