Dois contos de Eduardo Mahon
Eduardo Mahon é carioca e mora em Cuiabá-MT. É autor dos seguintes livros: Nevralgias (crônicas, poesia, 2013), Doutor Funéreo e outros contos de morte (contos, 2016), O cambista (romance, 2014), Meia palavra vasta (poesia, 2014), Palavra de amolar (poesia, 2015), Palavrazia (poesia, 2015), O fantástico encontro de Paul Zimmermann (romance, 2016), Contos estranhos (contos, 2017), O homem binário e outras memórias da senhora Bertha Kowalski (romance, 2018), Alegria (romance, 2018), Azul de fevereiro (contos, 2018). Atualmente, tem o romance A gente era obrigada a ser feliz no prelo, para lançamento em 2019. Os contos abaixo fazem parte de Azul de fevereiro.
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O ponto
No canto da parede, um pequeno ponto preto chamou atenção de Juliana. Ela abaixou-se e tentou pegá-lo, mas o ponto não se deixou agarrar. Vivo é que não está, brincou consigo mesmo Juliana. Era apenas um ponto inanimado, talvez uma mancha, sem razão de ser. Juliana tentou pegar o cisco entre o polegar e o indicador e, novamente, não conseguiu. Devia estar grudado à lajota. Feito de quê não foi possível saber. Os pontos pretos são assim: insondáveis. De qualquer modo, não era nada além de um pontinho ínfimo, desses que ninguém dá bola, com exceção de Juliana que, ao sair, disse à empregada: o chão do quarto está sujo. Passe o pano úmido duas vezes, por favor. A doméstica olhou tudo em volta e não viu o tal ponto preto que incomodava Juliana. Ainda assim, procedeu à faxina completa: arrastou os móveis, espanou, poliu, varreu e, para finalizar, soltou no ar uma borrifada de alfazema que usava para passar a roupa. Cama feita, toalhas dobradas, travesseiros simetricamente posicionados: o quarto ficou um brinco. Da chegada de Juliana, porém, não se passaram cinco minutos para que a empregada fosse chamada às falas: não te pedi pra passar o pano de chão? Sim senhora, mas eu passei! E aquele ponto preto? Que ponto preto, dona Juliana? Aquele ponto preto que está no canto da parede, quase na quina. Não viu? A empregada não reparou nenhum ponto preto e fez cara de assombro. Do quarto, Juliana gritava: este aqui, o ponto preto – ó! – mostrou com o bico do sapato. Ansiosa com o caso, Juliana dispensou ajuda. Foi ela mesma buscar uma pequena faca pontiaguda para remover a inconveniência. Raspou exatamente onde estava o ponto, mas não conseguia mais do que arranhar o chão. Parece uma verruga. Que praga! – pensou consigo, admirada com a renitência do indesejado. Juliana não se deu por vencida, porém. Da dispensa, voltou com a caixa de ferramentas e, dela, sacou a chave de fenda e o martelo. Depois de fazer mira no adversário, Juliana deu uma martelada com toda a força, arrancando lascas de piso que sujaram o quarto de pó fino. A mulher olhou o chão com um ar vitorioso que acabou por se desfazer ao constatar que o ponto preto permanecia teimoso no mesmo lugar, estampado no cimento. Daí se seguiram duas, três, quatro marteladas a fim de aprofundar a intervenção e extirpar, pela raiz, o ponto preto que se tornou insuportável para Juliana. No entanto, por mais que cavoucasse, Juliana continuava olhando o inimigo no chão, absolutamente inabalável, quase risonho. Desgraçado! – xingou o ponto como se tivesse sido por ele traída. Daquele momento em diante, vestiu-se de guerra: prendeu o cabelo, tirou o sapato, as meias de náilon, o relógio, a aliança de ouro e partiu para martelar o chão freneticamente até que fez um considerável buraco no canto do quarto, coisa que só mesmo um encanador consegue fazer. Morra, miserável! – gritava Juliana nos últimos golpes que dava no concreto. Por fim, vencida pelo cansaço, a mulher afastou-se para inspecionar o campo de batalha. No fundo do buraco, pregado à laje, o ponto preto sobreviveu incólume. Ele, o ponto, empinava o nariz provocando ainda mais a ira da inimiga íntima. Juliana começou a chorar ao perceber que o ponto preto dava de ombros para o esforço dela em removê-lo. Era o que lhe dava nos nervos – o desprezo. No buraco, Juliana jogou álcool, creolina, desinfetante, bicarbonato de sódio, vinagre morno e, esgotada a guerra química, despejou ainda uma lata de Coca-Cola que diziam ser tiro-e-queda contra sujeira. Quando, por fim, Juliana viu-se convencida que o ponto preto não arredaria o pé do quarto, fez a mala e foi dormir na casa dos pais. Deitada na antiga cama de solteira, resmungava entre os dentes: quero ver agora como aquele filho da puta se vira sozinho.
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Sujeito indeterminado
Valdomiro Neto entrou bufando pela porta e, de cabeça quente, deu uma topada na mesinha de centro da sala apertada onde morava. Caiu no chão, ressentido pelo dia amargo. O patrão não dava aumento, o professor não dava nota, a namorada não dava chance. Descansou no chão, fungando junto às lajotas de cerâmica esbranquiçada que forravam a saleta. Ou talvez não tenha sido exatamente isso o que aconteceu. De fato, Valdomiro Neto foi mesmo jogado ao chão, mas por força de um cachorro indisciplinado que deixou, perto da porta, uma poça de urina. O animal, ainda novo, protestava por ficar sozinho sem o dono e, portanto, bagunçava o coreto de quando em vez. Daí que Valdomiro abriu a porta e não fixou o pé como deveria. Flexionou a perna, buscando o ângulo de equilíbrio e, nem assim, manteve-se. Desabou no centro da sala onde não havia a tal mesinha de centro. O nariz ralou-se, isso sim, contra um tapete grosseiro de juta que compunha o ambiente com dois sofás fedidos a morrinha de cachorro. Conferindo mais atentamente, é provável que Valdomiro Neto tenha caído porque, ao tentar ligar a luz, pisou em um chocalho deixado pelo filho de dois anos, um dos muitos objetos plantados pela infância indolente. O cuidadoso pai fazia de tudo para desviar dos brinquedos tal qual minas explosivas. Pisava em ovos, coitado. Naquele caso, porém, a manobra foi malograda pela lâmpada queimada, curto-circuito ou falta de pagamento da conta de luz. Valdomiro Neto pisou com força no chocalho oval e rodou com ele dois palmos à frente até que caísse de costas sobre o tapete macio no qual brincava o filho todas as tardes. Mas não. Essa não é a verdade. Falando a sério, Valdomiro Neto não deu uma topada na mesinha, não escorregou na poça de urina, nem tampouco pisou no chocalho do filho. A rigor, ele não tinha filho, cachorro, nem mesinha de centro. Para entender o fato, devemos retornar um pouco mais no tempo. O sujeito nem Valdomiro Neto se chama. Trata-se de Cassiano Alves, solteiro, vinte e oito anos, formado em geografia, contratado por uma escola pública para dar aulas no ensino médio. Ele gostava da garotada. Por isso, não havia hora para continuar se dedicando à docência. Quando chegou em casa, subiu os três degraus da entrada da casa e enfiou a chave na fechadura. Encontrando alguma dificuldade, Cassiano Alves foi obrigado a deixar no chão a pilha de trabalhos que carregava. Vencida na marra, a fechadura cedeu. Ocorre que a papelada embolou-se no sapato do professor que se estatelou no chão. Foi assim que a queda se deu. Ou quase. Soube-se, logo depois, que Cassiano havia se demitido da escola, cansado de ser destratado pelos alunos que, na verdade, odiava. Aquilo tudo era difícil demais para ele. Não fez geografia e sim matemática, mas havia se arrependido. Ninguém gosta de matemática e de professores de matemática, tampouco. Nas mãos, ele entrou em casa apenas com o comprovante de demissão, uma única página designando local e hora para a reunião no sindicato dos professores que fazia questão de acompanhar o caso. Cassiano encontrou a porta aberta e entrou chutando o ar com raiva. Foi aí que derrapou no puído tapetinho de feltro que dava o “boas vindas” às visitas. Arrebentou a cabeça no porta-chaves pregado à parede oposta. De seguro mesmo, o médico anotou na ficha de entrada de Reinaldo Lima Filho o traumatismo craniano sofrido por ele, resultado do atropelamento nas proximidades de casa, quadro agravado por um forte inchaço interno e a aparente amnésia. Insiste ser Cassiano ou Valdomiro, quando os documentos dão conta de ser Reinaldo. Mesmo assim, o caso reclama esclarecimento, já que essa ficha médica ainda não foi assinada por longas divergências internas quanto à causa do ataque cardíaco, já que nunca houve carro, cachorro, urina, chocalho ou queda. A cabeça do paciente está em perfeita ordem, sem um arranhão. Seja como for, o mais importante que tudo é saber se ele está vivo ou morto, motivo de dúvidas até o encerramento deste conto.