Dois contos de Flávio Adriano Nantes
Flávio Adriano Nantes é doutor em Teoria e Crítica Literária (UNESP), professor/pesquisador de Teoria da Literatura da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Tem contos e poemas publicados em antologias e espaços independentes. Foi finalista do Prêmio Off Flip de Literatura, na categoria conto. Desejo sitiado é seu primeiro livro de contos, do qual fazem parte os dois contos abaixo. O livro é uma tentativa de homenagem à escritora Clarice Lispector, que este ano faria 100 anos de nascimento.
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desejo sitiado
O que te escrevo não vem de manso, subindo aos poucos até um auge para depois ir morrendo de manso. Não: o que te escrevo é de fogo como olhos em brasa.
(Clarice Lispector)
Dias antes de eu nascer, Clarice Lispector se retirou como as grandes damas costumam fazer – por saber a hora exata de se retirar. Não habitamos o mesmo mundo – esse aqui dito de forma aclichezada realidade. Clarice e eu nos encontramos num mundo outro: dentro do centro do vértice azul. Ela está para além dessas convenções e nomenclaturas ordinárias, mas isso Drummond já o dissera em poema. Essa mulher, sem nação nem território delimitado do ser, do tempo, do espaço, é um mistério que ainda não desvendamos…
Essa senhora que sustentou seu governo na estrela selvagem me deu o primeiro beijo homossexual; foi com ela que descobri que gostava de beijar (beijos molhados) rapazes e depois me consolou pela excitação que ardia meu corpo todo. Ao perceber o desaparecimento do meu objeto da paixão, me deu os ombros, onde dormi, procurando minha dignidade nos corredores estreitos e longos da cidade-mar. Quando acordei quis uivar gritos de desespero e arrancar a ausência com a força de minha solidão; ela disse me olhando profundamente: Grite, grite, você tem direito ao grito.
Ao me visitar sempre deixava uma mulher dentro do meu bolso até não haver mais espaço e minha vida ficou cheia de mulheres. Foi ela quem me transformou num homem-mulher, num homem-feminista, num gay-feminista: homem-mulher-gay-feminista. É isso! Deve ser isso. Quando meu interior fora completamente sitiado ela voltou de uma viagem longa à casa de praia de parentes pouco próximos, resgatou meu ser atrincheirado e o alocou ao lado de sua máquina de escrever. O ferro frio rasgando as fibras do papel e o tingindo com uma borra negra fez emergir um mundo, o mundo-mar. É possível abraçar o mundo, abraçar o mar? Quem é que sabe!
Clarice deixou marcas muito profundas em mim; desestabilizou minhas verdades com seus silêncios agudos. A estranheza dela me deixava leve porque eu me identificava com seus falsos gestos de desinteresse pela humanidade, com a exaustão que o mundo lhe causava, o seu tédio em relação a tudo, a saída pela palavra mais comum, a clandestinidade sempre à espreita, o entendimento como um excesso a mais. Esses gestos agora são meus, deixou-me por herança, mas eu não sei como usá-los…
Costumava vir em dias chuvosos; quando da estiagem viajava para onde tinha chuva; ao regressar ela chegava sem chegar; eu perguntava sobre a viagem, ao que respondia: Nem sei ao certo… mas quero saber de você, seus olhos estão mais brilhantes que de costume e esse cabelo sem corte te deixa parecido com Cristo… você é tão lindo e poderia encontrar outro lindo… Cristo com Cristo. Eu só dizia: Clarice, você, Clarice…
O edifício, a galinha, a barata, a mulher classe média, as cartas que (não) mentem jamais, a obsessão… quanta (in)compreensão te compõe. Eu te compreendo mais do que você possa supor. Sei o quanto tinha para dar e o quão pouco te pediram. Se nosso encontro fosse nessa realidade ordinária e contingencialmente te encontrasse no elevador e tentasse te falar, sei que diria: Desculpe-me, mas eu não gosto de conversar. Essa dor-dor-dor; quanta dor eu li na dimensão azul do teu olhar, mas eu não quero fugir, quero continuar morando aqui, aí, nos seus cabelos.
Ela falava, eu nada conseguia dizer e minha vida ficava assim carregada de poesia, de vida, de dor; era boa a nossa dor doméstica. A dor dela está em mim e não passa, não quero que passe, tampouco que me cortem essa dor porque talvez seja ela que sustenta toda a minha existência. Depois das chuvas de sábado à tarde, caminhávamos na lagoa; ela olhava para o sapato e eu para ela. Um silêncio eloquente criava tanta intimidade entre nós. De repente ela me perguntava algo assim: Como é gostar de pessoas do mesmo sexo? é diferente, audacioso, é lindo… um corpo em simbiose com o outro-mesmo; isso para mim é um mistério, um mistério celestial, angelical, que não leva em consideração o corpo-sexo; você deve ser um anjo. Clarice, você, Clarice…
Depois da cerimônia religiosa no cemitério judeu do Caju, que assisti de longe, sufocando meu lamento, querendo rasgar minhas vestes, por cinzas sobre minha cabeça, e encostar o rosto no pó da terra, voltei para casa e ao chegar ela estava me esperando. Por que você me deixou sentir tanta dor? achei que não fosse mais te ver! Como anda referencialista meu mocinho-anjo… temos uma relação para além dessas convenções que requerem lealdade, pacto de fidelidade irrestrita; sei que não sou uma mulher confiável, saio sem dizer tchau, mudo de casa sem deixar o endereço, mas meu coração selvagem está cheio de palavras, e você bem o sabe; estas são tão importantes quanto deus e isso vem de tempos que não se pode precisar, de um tempo sem tempo, de um lugar sem localização. A boca de deus está cheia de palavras, dele eu roubei meu bocado e penso que não se importou, pois nunca as requereu e me deixou utilizar todas para meu consumo.
Você, Clarice, ininterruptamente você.
Quero agora sustentar meu desejo e com os braços te apertar ao peito e andar dando pulinhos sobre os paralelepípedos do meu mundo pela felicidade que te roubei. Amanhece em mim o meu/teu desejo de palavra… palavra-mar… palavra-mundo… O mundo dessilenciado pela palavra nômade. As muitas vozes montadas nas asas da palavra se alocam nas frestas do tempo fraturado na espinha dorsal e exigem a existência delxs todxs. E eu escrevo.
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cotidiano II
Mamãe costurava durante o dia e à noite lia na solidão e na penumbra da sala abandonada; eu a observava enquanto via tv; um olhar nela e outro na tela. Mamãe era infeliz; dela herdei a infelicidade; aprendi com ela os caminhos para a tristeza. Minha casa era só mulheres: tias, mamãe e vovó, a dona da casa, lugar para onde todas voltavam depois que a vida ficava vazia e doída. Vovó se casou com uma mulher que se transformou em tia. A exceção de mim, nunca viveu qualquer homem em casa. Para as mulheres da casa eu não era homem nem mulher; fui sempre a criança que todos cuidavam. Vovó tomava uísque e fumava; mamãe a olhava; a tia-esposa dizia que vovó morreria de tanto beber e fumar. De algo tenho que morrer, respondia vovó, rindo alto. Num almoço de domingo eu disse que queria ser mulher igual a elas; as tias se olharam; mamãe abriu a boca; vovó engoliu todo o uísque do copo e me expulsou da mesa. Do meu quarto ouvi os gritos de vovó, mas nada entendi. Mamãe e eu nos mudamos. Vovó nem as tias nos visitavam. Mamãe e eu éramos duas mulheres solitárias. Mamãe continua costurando de dia e lendo à noite, eu também.