Dois contos de Luciana Borges
Luciana Borges, tendo surgido no chuvoso mês de janeiro, é do signo de capricórnio, o que lhe dá, entre tantas ambiguidades, patas firmes na terra, mas também uma instável cauda de peixe. Desde muito tempo se lembra de inventar histórias, modo mais fácil que encontrou de des|conhecer o mundo. É professora de literatura na UFG em Catalão, cidade onde nasceu e, salvo por um breve hiato, sempre morou, estudou, escreveu e aprendeu a gostar da literatura. Sempre que pode, troca o dia pela noite. Odeia que a acordem. Como pesquisadora, dedica-se a estudos de literatura de autoria feminina, erotismo e pornografia. Já publicou textos literários em coletâneas e revistas, mas nenhum livro que não seja teórico.
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Porque ela era sua desconhecida [ou] sete parágrafos sobre o sono e o sonho
Eu sou sua miragem/ sombra fresca da sua realidade. /Sou sua resposta/ sua ilusão de ótica palpável/ seu improvável/ seu conforto e seu pesadelo.
Zélia Duncan
§ 1
os efeitos da noite. não se livrar do intrigante pérfido indispensável mecanismo de dissolução de formas e cores. para que se livrar. a distorção que melhor faz enxergar. escuro clarão. fascinante e assustador um ambiente ou pessoa podem parecer diversos sem a luminosidade do dia: escamas de camaleão. acordar com o sol dormir com a lua, quem havia inventado essa máxima. melhor é passar a noite em claro, entrevendo obscuridades na luminescente oclusão da luz. é isso o que ele pensa agora, vendo o corpo da esposa dormir.
§ 2
a primeira vez em que dormiram juntos, ainda namorados, era de noite. e todas as noites nesse tempo do casamento. sempre assim. ela dormia na mesma posição. o corpo imóvel estendido ao longo da cama, os braços cruzados sobre o peito, ou estendidos ao lado do corpo. sempre de costas. o sono da múmia. se ele dormia, e acordava no meio da noite, tinha a nítida impressão de dormir numa pirâmide, ao lado do sarcófago. carros buzinando na grande avenida. luzes. sirenes. a cidade lá fora e ele ao lado da cripta. mas ela respirava. sim, incrivelmente, ela respirava. pausadamente via o peito subir e descer. os seios bonitos dentro da camisola sob os braços cruzados, os olhos lacrados. o corpo estendido dava-lhe calafrios e ao mesmo tempo lhe despertava a incontrolada ânsia da posse, sua boca salivava. de onde? de que tempo? ele que não sabia que época remota era essa outra, a noite opressa sobre a memória, as lembranças inexistentes.
§ 3
noites sem conta, ele a toca levemente, apenas para se certificar. ela abre os olhos, sorri e pergunta o que foi amor, sem perceber as gotas de suor que lhe povoam a fronte excitada e insone. outras, lentamente ele lhe sobe a barra da camisola, descobre pernas e pelos, cola-lhe a boca no seio, escala seu corpo como a um monte íngreme, altera-lhe a posição apenas no que é necessário para cavalgá-la pedindo que não se mexa, não fale, não abra os olhos. goza lentamente o escuro das pálpebras, o escuro do sexo, a imobilidade do silêncio na noite.
§ 4
ela era sua esposa. todos os dias ria e falava, a pele clara, os olhos redondos. todo o dia, nas ocupações diárias, tomava conta de tudo, esperava por ele, cuidava dele como cuidaria dos filhos que ainda não tinham. produzia-se cabelo unhas perfume dentes, tudo para ele, sempre chegando exausto do trabalho. ela era sua esposa. mas aquela atividade toda do cotidiano a tornava uma estranha. de dia, à luz do sol, tinha certeza de que vivia, mas à noite, no quarto, mesmo que não fosse o escuro total, sua figura inerte, mas respirante assumia requintes de fantasmagoria, contudo ali é que parecia encontrar o real. real? assim todas as noites. os dois sozinhos no apartamento e, no dia seguinte, quando amanhecia, ele apenas acabara de adormecer. quando acordava, ela já se levantara. ela era só dele. enquanto não arranjava o que fazer com o diploma recém conseguido, ela era só dele. o tédio dos dias só podia ser apagado pela noite. ela, a sua salvação, seu conforto, labiríntico véu de maya. durante o dia, nenhuma palavra sobre as ações da noite, esse mundo paralelo.
§ 5
adormecida a esposa após o dia, a tarde, o jantar com os amigos e o amor, ele se consumia no desejo de saber o que se passava por detrás das pálpebras, descidas sobre os olhos, cortinas sobre um quarto proibido, o leito da virgem. queria saber o que a roubava dele durante o sono, um sono de morte que a tornava tão alheia e do qual ele não podia partilhar, apenas projetar esta espécie de loucura. seus olhos então o traíam e no lugar da pele rosada da esposa, via uma morenez africana; em vez de olhos redondos, via o amendoado milenar de olhos outros, estranhos. o sono ancestral.
§ 6
os colegas de trabalho estranham suas olheiras e, como a jovem esposa, ignoram suas noites de vigília, enquanto ela repousa em sono profundo. tão profundo que não percebe quando o marido, naquela noite, após observá-la longamente, começa a prender-lhe os pés com as faixas de linho que comprara exclusivamente para vesti-la do que sempre vira. começa pelos pés, sobe pelas pernas, deixa um vão entre elas; delicada, mas firmemente, chega aos braços cruzados, às mãos, aos ombros, contorna dos seios ao nascimento do pescoço. ela imóvel pensando tratar-se de uma simples variação do jogo a que se entregavam desde sempre. ele maneja com excelência as faixas estreitas tudo executando com cuidada atenção e técnica perfeita, a memória acordada de súbito. serve de instrumento à imortalidade ritual de uma deusa imperecível, e se torna, ele próprio, deus. era esse o outro tempo, essa a sua função, a que nunca havia esquecido.
§ 7
o sono dela é, com efeito, profundo. mas não o bastante para impedir que desperte, do adormecimento voluntário e do jogo, no momento em que as faixas atingem o pescoço e impedem o grito, sufocado para sempre na garganta. ele ainda pode ver, através do tecido, seus olhos semi-abertos, quando ata as últimas pontas da faixa sobre os cabelos. no entanto, já amanhecera há tempos, era necessário ir ao trabalho. antes de fechar a porta do quarto, volta-se. percebe que, sob as ataduras, o peito já não arfa: aceita finalmente sua posição, seu repouso. agora, sim, estremece aliviado, reconhecia a mulher com quem havia se casado.
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Zodiacal Lovers [ou] as doze casas da paixão
“Eu sinto que você é a pessoa/ mais parecida comigo que eu conheço/ só que do lado do avesso.”
Alice Ruiz
[áries]
é seu primeiro. vivem às turras mas ele é lindo e loiro e a leva para passear na roda gigante com seu braço firme e ela adora girar feito a louca que não é esquecida do mundo. aos dezoito nada é tão sério e nada é tão grave e nada é tão bélico e nada é tão excesso. punhos cerrados e dedo em riste e ele é seu animalzinho de estimação mas sua lã não é a do velocino de ouro. só quando ela resolve habitar os cômodos da casa de touro é que ele quer voltar com seu sol seu céu seus anéis que não são de saturno. balido doce gentilmente. ela não pode ser diferente. pula o cercado para o lado de lá porque o pasto do vizinho é sempre muito muito verde. superlativamente verde.
[touro]
é o perfeito. até um dia. o barro de que são feitos chamusca o lençol e o travesseiro o vão das portas e das pernas a tinta dos muros e a poeira do chão. fazem um par. tudo fazem em par. na casa sobre a pedra um mundo outro. ela finalmente ganha de presente as patas traseiras que nunca tem. ela é agora inteira e abandona o velho claudicar. ele é olhos franjados sedosos bovinos cativos da gargalhada ou das emanações sulfurosas da mesma sempre terrível garganta dela. um dia. como todo obstinado, este ele vive de silêncios, rumina por dez anos o capim das horas e a certeza de toda a impossibilidade do eterno. muitos quilômetros distante, ela apenas chora com o olhar fixo e o telefone na mão.
[gêmeos]
são dois. como não pode deixar de ser. dois que nunca chegam a ser um o que quer que fosse. como não poderia deixar de ser. um quase é, mas não poderia. com o primeiro ela pensa em profundezas ao mesmo tempo que ele ri como se asas ruflassem ao seu redor. ela tem febre e frio e unhas roxas sempre que o vê mas disfarça muitíssimo bem transformando tudo em literatura. ela lhe dá os livros que não tem ele não lhe dá nada. mesmo que ela lhe agite sua escamada e brilhante cauda de peixe, apesar de duplo, este é fiel e realista. o segundo marca encontros e nunca vai. como não pode deixar de ser. reuniões carro quebrado estágio paciente morto compromissos políticos celular sem bateria, o diabo a quatro. ela em casa, com cara de tacho, olhando o relógio. para este ele, ela não dá nada. nada mesmo. nem suas unhas, nem suas melhores tardes, nem suas mais terrificantes falas e nem seu mais improvável silêncio.
[câncer]
ciúmes dela que nem é dele. quer casar em uma semana. ele odeia livros mas ri como poucos. faz o corpo dela doer até onde ela nem sabe que existe fundura e rouquidão de cratera. ela quer que acabe logo. quer sempre ir embora e sempre desvia os olhos. ele quer casar em uma noite. ela foge de novo para casa. ela não tem saco algum para gente que choraminga. ela não quer ter que cuidar de pessoa nenhuma. não mais. nunca mais.
[leão]
em toda a sua vida, jamais quisera coisa alguma com esses moços de cabelo longo.
[virgem]
um dia descobre que os pés dela têm o cumprimento exato de seu membro virilis. está paralisado. não pode conviver com essa coincidência inusitado acontecimento que só há uma vez em cada vida quando há na vida de alguém. não sossega enquanto não esquadrinha cada detalhe da pele meio áspera, com método calcula a disposição dos pequenos dedos e a periculosidade das unhas. ela é tão pequena mas acostumada com tanta esquisitice. ela vive de escrever essas esquisitices e dormita enquanto ele procura de novo a fita métrica. mais uma vez chega em casa depois de horas. virgo intacta.
[libra]
são dois. como não poderia deixar de ser. não equilibram a balança. como não poderia deixar de ser. ela quer que lhe digam o que é o que não é. ela, a devoradora de certezas. este agora lhe diz, oh, por favor, deixe o tempo. o tempo diz tudo. ela não sabe a espera. nunca soube da indecisão que teme mas o deixa devorá-la em território privado. e adora. este ele só volta quando quer e ela nem tem ideia de onde é sua casa mas sempre lhe tira os sapatos e diz pronto agora você está nu. o outro ela tem quatorze anos e se beijam embaixo da bandeira do brasil na escola secundária. não sabe que ele voltará aos dezenove e que novamente aos trinta. nada nessa vida é mesmo para se saber.
[escorpião]
ela observa suas pinças. sempre odeia que a prendam. sejam do tipo que for as cadeias. mas lá já está o ferrão e ela jaz ferida de morte sobre a cama.
[sagitário]
o primeiro ela nunca nunca que estará em um site de relacionamento. até dizem que todos que se inscrevem têm problemas. sério. mas está e ele. baixinho e duas filhas adolescentes. volta para o vinho por sua causa. é capaz de fazer tudo por ela, este arqueiro. até atirar na própria pata. ela não quer nada de graça assim tão fácil apaixonamento de encomenda com dia hora minuto segundo marcado para cravar o corpo desavisado. volta para casa. sua memória sem querer esquece e-mail celular telefone fixo rosto cheiro voz saliva e todas as letras que componham a palavra lembrança. o segundo é quase criança mas sua barba e performance tão adulta. escreve poemas e lê para ela. o terceiro é o perfeito centauro e ao final ela sangrando com a seta atravessada no flanco, sem dó. o último é o último e dessa vez ela promete que nunca mais seguirá ao lado desses homens metade cavalo.
[capricórnio]
ele a olha como se nada fosse acontecer o incandescente coração obscurecido pela fina bem-formada camada de gelo. ele sabe o que têm em comum e isso o assusta deveras. o que não impede. a resistência necessária. fica de longe porque tem nome de leão. o que não impede. trocam fagulhas olhares e punhados de terra um sobre o túmulo seco do outro. ele não precisa de ninguém. ela tampouco. são lacunares. são perfeitos. mas ela ele não sabe.
[aquário]
não há lugar nem pudor no apartamento de paredes verdes. a cidade longa e longe. ela adora as pontas dos dedos dele ele adora a pele do corpo dela, as luas negras. ela quer escrever. ele quer saber tudo sobre a vida. lêem poemas às três da manhã. corpo a corpo ondas de lava na sacada. às vezes ele é de água e a cada manhã dissolve, calma e irreversivelmente, todo o desejo e o gozo escuro da noite. ele anda pela casa. quer saber o que ela pensa. ele a adora porque ela o adora porque ele sabe muito fazê-la rir. por várias luas gastam o tempo em um jogo bastante esquisito. às vezes ele é de ar e a cada manhã transmutado em vento sopra-se todo sobre ela. ela é de terra e pelo vão da porta a pequena montanha transformada em diáfano pó.
[peixes]
eu vi seus olhos, isso leva uma vida para esquecer mas não há tempo agora você vem comigo um outro dia. essa a fala a idéia fixa daquele que quer reinventar um falo adormecido um casamento que já nem existe mas que ainda. nadar. não morrer na praia. não morrer de modo algum ante a carne que é de outra. ela não é boa, nem má. é humana. não quer mais. não é por isso. não é mesmo. ela até desfalecera de agudo gozo. este também é de água, e ela detesta a lama das maledicências. ordena que ele nade de volta para seu calmo leito, conjugal aquário. acabadas as casas novas, resta mesmo apenas revisitar as antigas.