Dois contos de Mari Vieira
Mari Vieira por ela mesma: “nasci onde não faltava luz e nem horizonte. Tudo era imenso, o céu era intensamente azul, os quintais eram matas e a inspiração um dado da natureza. Todos os caminhos eram quase sempre versos e a poesia morava perto do rio. Tudo era mágico, até a ausência de luz elétrica que só chegou quando eu tinha por volta de seis anos. Saudades do Vale do Jequitinhonha-MG. A São Paulo que me recebeu há mais de vinte anos realizou os sonhos que nasceram lá: me tornei professora, escritora e poeta. A força que tenho para dizer que sou uma realizadora de sonhos também nasceu nos longínquos cantos do Vale. Publiquei pela primeira vez em 2017 no Cadernos Negros V40 – Contos afro-brasileiros – Quilombhoje. Em 2019 participei da antologia Comemorativa do dia Internacional da Mulher ─ Mulherio das Letras Portugal – Prosa e Conto, Ed. In-finita, da antologia Nenhuma a Menos, Ed. Versejar, da antologia Movimento Palavras Pretas, Ed. Versejar, do Cadernos Negros V42 – Quilombhoje e também do livro Escritoras de Cadernos Negros – Contos e poemas Afro-Brasileiros – (Coleção de mão em mão) Secretaria Municipal de Cultura. Sou cofundadora do coletivo de escritoras negras Flores de Baobá. Instagram @amarivieira
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ANA HORIZONTE
Ana veio de Horizonte, uma cidadezinha distante, pequena e iluminada por um sol intenso, que obrigava a vida a uma secura brava. Cresceu postada na janela, observando o longe. Do pouco que sabia, recitava a razão do nome do lugarejo, achava bonito. Mas, em segredo, sabia que a linha distante era divisão entre a ausência e a presença ocasional do pai — quando ele vinha, surgia no longe como um espectro que, aos poucos, se materializava em casa… Primeiro o aviso, a ansiedade da mãe, os preparos para a chegada, a alegria da avó e, por fim, a presença dele. Pra ela, às vezes, era um estranho, mesmo diante de toda familiaridade.
Quando Ana foi para além da linha, deixou a mãe chorosa e feliz: “Vai, Ana, aqui não tem como viver”, dissera, decidida, entre lágrimas. Aqui virou Ana Horizonte porque a patroa quis diferenciá-la da outra Ana. Gostou.
Aos gritos da patroa, Ana voltava a Horizonte por uns segundos antes de atendê-la. Por ela, Ana sentia um misto de pena e medo. Quando estava triste, Ana adivinhava a voz embargada, as lágrimas descendo, e a socorria com doses de uísque.
Há muito aqui chegara… Horizonte virara uma penumbra vermelho-roto; a mãe, uma voz ao telefone, e o pai, quase um fiapo na memória…. Um dia, para não morrer de solidão, ajeitou-se com Adelmo, porteiro bom que trabalhava no mesmo prédio. Tiveram, sem muito querer, dois meninos… A casa distante estava inacabada. Na patroa, morava na cozinha, o metro quadrado mais sem horizonte que existia. Mas Ana se conformava, a patroa era das boas, diziam as colegas. Tinha suas esquisitices, mas era boa.
Às vezes, ela bebia de passar mal… Nesses dias, Ana não podia voltar pra casa. Hoje seria assim. Ficava escutando-a tecer suas dores numa voz incompreensível, que Ana fingia entender. Velava o sono da patroa pensando no sono dos meninos, no do companheiro, na casa que seria terminada, na mãe e no pai que esperavam há um tempão para vê-la. Dormindo na patroa, só dormitava e emendava cansaços. Ficava pela afeição esquisita que sentia por ela, por medo de perder o trabalho e pela pena estranha que sentia dela, quando se envergonhava das bebedeiras e a compensava ricamente.
No raiar do dia, Ana, no sofá da sala onde dormia, observava a imensidão do sol e se permitia recompor suas saudades, ensaiar uma volta linda, adivinhando o rosto da mãe, o riso banguela do pai ao ver os netos, declarando, bobamente, cheio de afeição: “Puxou eu… dois pretinhos”. Na imensidão da sala vazia, Ana sorria e jurava: “Ano que vem eu vou”. Falava com certa agonia — não queria ser um espectro ao longe como fora o pai.
Pensava sobre isso com um riso amargo, enquanto observava, do terraço ajardinado, a vermelhidão que anunciava o dia quente. E, acordada, sonhava rostos e vozes que a faziam seguir: a vozinha dos filhos reclamando pra não levantar, o rosto do companheiro que madrugava, a voz da mãe que chamava as galinhas para dar milho, o canto dos galos da vizinhança da roça, a imagem do pai… todos distantes. E fechava os olhos na esperança de que se aproximassem e pudesse tocá-los… Às vezes, o horizonte é só um desejo.
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FIA, A MÃE E A AVÓ
Num certo dia, sob o sol tórrido, ela a avistou debaixo do abacateiro. Fora advertida pelas amigas de que aquilo não era nada, que deixasse para lá, senão endoidava de vez. Fia, que já sabia colher os mistérios da vida, não as contestou, sorriu em silêncio com o canto dos lábios e, transbordando afeição pelos olhos, cumprimentou-a, acariciando a casca da planta, e foi-se.
Desceu tranquilamente o caminhozinho que levava ao riacho. O vestido longo raspava no mato e recolhia carrapichos. Fia não se incomodava com os pequenos brincos que se juntavam na sua barra. Via graça. Chegou, sentou-se numa pedra à beira do riacho, enfiou os pés na água e desfilou toda sua serenidade, desmontando um a um os enfeites criados pelo capim. As meninas já estavam se molhando, mergulhando… Fia não; antes, desceu a mão sobre os olhos, para se proteger do sol e tentar ver ao longe se havia algum menino espiando, depois ajeitou a calcinha e só então desceu o vestido lentamente. Com o dorso nu, encolheu os braços sobre os seios, que ainda não tinham nascido, tombou o corpo e viu os dedos dos pés se abrirem sobre as pequenas pedras. Ficou ali alguns instantes…. As outras gritavam vem, vem… . Elas já estavam lá embaixo e ela ali, desfrutando da água calma — espelho em que via luzir sua tez negra retinta, que faiscava sob o sol que abrasava.
Acocorou-se, deliciou-se com as mãos dentro d’água — “molhar primeiro os pulsos e a nuca para não passar mal”, como sempre recomendava a mãe. Fia descansou um pouco na sua solidão, mas as outras, afeiçoadas ao barulho e às farras em grupo, não a deixavam sentir aquilo que sentia, nem ouvir o zum-zum da natureza. Demorou-se o tanto que pôde, queria ficar com aquele sentir que ganhara debaixo do abacateiro.
— Já vou, me deixe — disse com calma.
E ficou mais um pouco se contemplando no espelho d’água. Viu as tranças bonitas e sorriu. Levou as mãos à cabeça para desfazê-las e mergulhar o cabelo livre na água, mas, assim que começou, lembrou-se de quando a mãe falava “pode ir se banhar no rio, mas volte sem desmanchar as tranças”. Fia soltou apenas uns dois pontos pertos da nuca.
Era debaixo do abacateiro que a mãe a colocava entre suas pernas e desenhava tranças incríveis. Fia preguiçosamente reclamava só pra ouvir sua mãe dizer: “Já passa, fia”. Daí a um instante, de novo, só pra mãe massagear a cabeça. Fia sentia o gosto do cuidado. A mãe só ficava zangada se escurecesse sem terminar, aí ela dizia, se fazendo de brava: “Idalina, você já é mocinha, fica quieta”. Tinha graça nisso. A mãe fazia suas tranças com leveza e lhe contava histórias, trazia lembranças de outras épocas, lhe dava conselhos: “Mocinha não pode ir pra escola desarrumada”. E emendava: “Não liga praquelas meninas que implicam com seu cabelo, elas num sabe o quanto você é bonita, num consegue ver”. A mãe falava e contava história de como aprendera com a avó a fazer óleo de mamona, uma maravilha pros cabelos, “sua avó sabia das coisas”.
A avó fora uma anciã que tivera cinco filhas e quatro filhos, de quem cuidara ao lado do avô. Sua mãe era a caçula. Fia tinha só uma imagem da avó sentada no canto do fogão com um lenço azul na cabeça. Quando Fia nasceu, a avó estava doente, achava que por isso a mãe escolhera a filha primeira para perpetuar a sua mãe e lhe dera o mesmo nome: Idalina. A mãe explicava: “Sua avó era uma mulher firme, doce e forte, a benzedeira mais procurada da redondeza; esperta e decidida, nunca abaixou a cabeça pro povo daqui e curou até quem lhe desejava mal”. Como era firme e forte, durou até Fia completar cinco anos e meio. E se foi.
Fia lembra da pequena multidão na casa dela no dia do enterro. Do resto não se lembrava. Pra ela a avó nunca tinha morrido, pra ela a morte era um tropel que cavalgava distante. E fora até aquela tarde debaixo do abacateiro… A mãe avisara, naquele dia, que ia refazer suas tranças para a festa de Imaculada Conceição. Fia escutou o chamado e, enquanto a mãe preparava os óleos, pegou a boneca, que também ganharia tranças… Ia ter festa, então seria um penteado especial.
Fia achava que não tinha demorado, mas nem havia chegado e viu a mãe lá encostada no tronco do abacateiro meio caída, com o pente laranja de dentes largos aos seus pés, o pote de óleo derramado na saia florida e as fitas azuis sendo levadas pelo vento. Foi-se de repente.
* * *
Fia olhou-se no espelho d’água e viu uma pontinha da fita azul que enfeitava suas tranças cair da nuca, lembrança delas. Olhou no horizonte e viu as amigas num estardalhaço, jogando água umas nas outras, brilhavam sob a luz do sol, riam muito alto, já desocupadas de sua demora. A sua volta o mato farfalhava cheiros familiares, adocicados, levemente rançoso como o óleo de mamona. Ao longe, o abacateiro deslumbrante, majestoso, a fazia sorrir. A mãe estava lá a apressando porque não gostava de ficar até o escurecer. “É nessa hora que os espíritos vêm, minha fia”, falava a mãe, olhando para os lados meio desconfiada. Fia ria e dizia: “Mãe, nunca vi nenhum”. “Sorte sua, minha fia”. Parou de desacreditar nas histórias da mãe quando viu a avó no banquinho com a cabeça encostada no tronco grosso. Não teve medo, só a acariciou.
Agora, Fia olha na água e vê simultaneamente seu rosto, o da mãe e o lenço azul da avó. Todas ali, uma no colo da outra — o vento, que a acariciava, trazia os ecos dos cuidados da avó e da mãe. Sabia que não era o alarido das meninas que já estavam longe. Era a certeza de que o agora se preenchia do antes.