Dois contos de Mário Baggio
Mário Baggio é jornalista, escritor e blogueiro. Mantém o blog Homem de palavra, em que divulga diariamente sua produção literária. Publicou 3 livros de contos: A (extra)ordinária vida real (Autografia, 2016), A mãe e o filho da mãe e outros contos (Autografia, 2017) e Espantos para uso diário (Coralina, 2019). Teve textos publicados em várias revistas eletrônicas, entre elas Vício Velho, Diversos Afins, LiteraturaBR, Literatura&Fechadura, Gueto, Ruído Manifesto, Escrita Droide e Subversa. Participou da Antologia Ruínas, da Editora Patuá, e da coletânea Fragua de Preces, editada em espanhol. Prepara dois novos volumes para 2020, um de poesia e outro de contos.
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Um dia de chuva e Amy tocando no rádio
No dia em que você foi embora eu tinha resolvido cozinhar e estava preocupado, sem saber se fazia macarrão ou almôndegas. O rádio tocava uma canção de Amy, que estaria morta três dias depois. Claro que eu não poderia imaginar uma tragédia dessas — o fato de você me abandonar, quero dizer. A única coisa que eu sabia é que você preferia macarrão e eu, almôndegas. Também me lembro de que naquele dia chovia muito. Ou talvez houvesse sol, não sei, mas eu quero pensar que sim, chovia, porque é mais romântico, e mais triste também, ser chutado pra fora da vida de uma pessoa num dia de chuva.
Além disso, Amy ainda estava viva e acabara de lançar um disco novo. E nós iríamos comprar e ouvir deitados no chão da sala, de mãos dadas, compartilhando um cigarro e uma taça de vinho. Nada disso aconteceu, ainda não tínhamos saído para comprar o disco, chovia muito e eu resolvi fazer a comida. Estava tudo indo bem, fora a indecisão sobre o macarrão ou as almôndegas. Até que você entrou na cozinha.
Almôndegas ou macarrão?, eu perguntei, antes de baixar os olhos e ver que você estava com a mala na mão. Era a mala cinza, aquela grande, a que nunca usávamos porque ela é maior do que o tamanho permitido pelas companhias aéreas. Quando fomos para Londres no último ano tivemos que comprar uma menor — será que você se lembra? — e ficamos indecisos sobre a preta ou a azul. Azul, você tinha dito, porque era a cor da camiseta que eu estava usando naquele dia.
E então você foi embora e eu fiquei paralisado, olhando fixamente para o bolo de carne picada sobre a mesa. Resolvi jogar a carne no lixo e fazer o macarrão com bastante molho de tomate e cogumelos. Você sabe que eu não suporto cogumelos, mas comi assim mesmo. Engoli tudo, driblando o nojo e as lágrimas. O rádio não parava de tocar Amy, uma e outra vez. O locutor repetia que era um grande dia, com um sol exuberante. Eu ainda acho que chovia. Ou talvez não. Não sei.
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Desculpe o incômodo!
Madrugada, o telefone celular toca e me acorda. Olho a tela — número privado — e aperto o botão verde. Carlos Baruque?, indaga uma voz masculina desconhecida. Não, número errado, respondo contrariado e desligo o aparelho. Procuro pegar no sono de novo. Dois minutos depois, novo som do telefone. O mesmo número privado e a mesma voz perguntando por Carlos Baruque. Eu repito, com rispidez, que ele se equivocou, que aqui não há nenhuma pessoa com esse nome. Desculpe o incômodo, enganei-me na hora de digitar o número, diz a voz. Desligo e penso: Idiota, por que não vai acordar a mãe dele? Tento novamente pegar no sono e dormir as poucas horas que restam antes que chegue a manhã. O telefone toca pela terceira vez e a mesma voz pergunta por Carlos Baruque. Resolvo pôr um fim à questão: Sim, sou eu, quem fala? O que você quer?, respondo, visivelmente irritado. Senhor Baruque, eu queria avisar que acabo de dar um tiro na cara de seu filho. Joguei o corpo no rio Tietê, perto da Casa Verde. E desligou.
Ainda que seja solteiro e não tenha filhos, perdi o sono por completo. Fiquei olhando a paisagem da cidade de São Paulo pela janela.
O dia amanheceu.
ROZANA gASTALDI cOMINAL
Espantada com os contos. Sim, chovia quando a moça partiu e também quando o corpo foi engolido pelo rio Tietê.