Dois contos de Sara Albuquerque
Sara Albuquerque é escritora e performadora literária. Mestra em Escrita Criativa pela PUCRS. Autora dos livros de poemas “sete centímetros de língua” (Patuá) e “giz morrendo” (Iogram); e dos títulos infantis “O segredo do rio Mundaú”, “O embrulho misterioso de Nina” e “Ei, você viu Luizinho?”, todos pela Iogram. Conheça mais do seu trabalho em: albuquerque-sara.blogspot.com
“Bartolomeia” foi premiado em terceiro lugar, na categoria Contos, no Prêmio Off-flip de Literatura 2018, e publicado na Coletânea Off-flip. Neste mesmo ano, a autora também teve sua obra “A estranha do pezão” entre os finalistas, na categoria Infantojuvenil.
“Inocência”, em sua primeira versão, foi publicado na Revista Estação Literária, da Universidade Estadual de Londrina (PR), v.21, p.261-262, jun/2018.
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Bartolomeia
Bartolomeia virou zigoto por volta de treze horas depois dum sarro entre sua mãe e um sujeito da vizinhança de quem não herdou memória nem sobrenome e a quem também nunca chamou de pai, eis que o infeliz se emputeceu quando descobriu dona Flor embuchada, que, na época, nem era dona, só Flor, pois devia ter uns catorze anos nas costas, e contam as línguas do bairro que, na noite em que tomou clareza das notícias do embuchamento, o rapaz jurou de pé junto que não chegou nem perto de meter o bilau por entre a calçola da dita cuja, devendo ela mesma provar perante o nosso senhor jesus cristo que ele era o pai da criança e, tendo ele decidido dizer umas poucas e boas pra dona Flor, que, na época, nem era dona, só Flor, pois devia ter deixado de brincar de boneca fazia pouco, então pagou a comanda do bar dispensando a necessidade de troco, saiu no meio da rua e, como que não vendo o sinal vermelho, foi atropelado pelo carro da funerária deus-acolhe-a-todos, caindo no asfalto mortinho da silva.
Dona Flor ficou conhecida no bairro do acontecimento e nos bairros vizinhos quase todos, contando a internet que rolam boatos da história até mesmo nos estados unidos, pois que ela também passou a jurar de pé junto que não houve penetração de bilau-boceta com o sujeito da vizinhança que morreu, deus o tenha, sinal da cruz, e que Bartolomeia, coitada, foi concebida mesmo de um sarro, e, nessa situação, pois, dona Flor ainda era virgem, mas não do horóscopo, virgem mesmo, como explica o livro de ciências, na parte de sexualidade, página setenta e oito: quem nunca fez sexo; quem possui hímen vaginal; quem é casto, puro, santo; e isso fez dona Flor achar foi bom quando o médico disse que o parto seria cesariano, porque poderia se manter virgem por pelo menos mais um pouquinho de tempo, enquanto não aparecia o felizardo que iria lhe afrouxar o coração e as pernas, o que, como é sabido por todos, não foi o caso do moço da vizinhança que morreu, doando o espermatozoide à vinda de Bartolomeia, mas não sendo, por sua vez, pai, porque ser pai diz respeito à ação humana muito mais complexa.
O nome de Bartolomeia era pra ser Bartolomeu porque, não estando a barriga de sua mãe muito pontuda e nem ela tendo sentido desejo de comer morango, garantiram os entendidos de prenhas que seria menino, e dona Flor ganhou berço, roupas, sapatos, foi de um tudo azul e verde, e naquele alvoroço de chás de bebê e cozinha e fraldas, alguém lhe perguntou qual ia ser o nome da criança, só que dona Flor ainda não tinha pensado no assunto e mentiu que ia ser surpresa, mas, naquela noite, foi logo de pesquisar na bíblia qual ia ser o nome mais adequado, Lucas, Pedro, José, João, já tinham muitos desses no universo e não queria ver seu filho na escola sendo intitulado de Lucas um ou Lucas dois, então decidiu ver o nome dos outros discípulos e descobriu por lá Bartolomeu, ora vejam, poderia chamar de Bartôzinho quando fosse ainda miúdo, e Bartô, tira essa toalha de cima da cama, Bartô, vem almoçar senão vai esfriar a comida, era mesmo de um nome muito bonito, e sendo católica não praticante, uma modalidade de católico que vai à igreja de vez em quando, principalmente no natal e na páscoa, mas acredita muito em deus com todas as suas forças e até dá esmolas, dona Flor não sabia que Bartolomeu era citado na bíblia poucas vezes e que das suas obras quase nada se sabia, pois o que importava mesmo era que aquele nome tinha origem sagrada e, de quebra, servia pra fazer apelido agradável.
Foi então, no dia dois de novembro de noventa e dois, que Bartolomeia veio ao mundo de olhos fechados e não emitiu nem um bocadinho de som ou de lágrima, fazendo o povo do hospital ter susto de que a menina tinha nascido morta, e era dia de finados, minha nossa senhora, que azar, que coincidência, mas lhe meteram o estetoscópio no meio dos peitos e, milagre seja dito, parecia zabumba tocando lá dentro, comprovando, pois, a existência de uma vida primária, ainda que não se pudesse constatar apenas com a frente dos olhos, e tendo, em seguida, a enfermeira entregue a menina nos braços de dona Flor, esta lhe deu três tapas na bunda porque onde já se viu esse negócio de não chorar, reparem que nasceu enganando até os mais entendidos, é menina, é menina, vai ter que se chamar Bartolomeia, ao que a criança abriu os olhos azuada com o que acabara de acontecer, carregando nas pálpebras o peso de sua primeira culpa, uma culpa que lhe fez companhia na sombra, mesmo depois de crescida e menstruada e estudada e mulher feita.
Não tendo as intenções de magoar ninguém e guardando medo até de barata morta, não se sabia se por decisão maturada ou se por tão repetida que dela se tornou difícil se desvencilhar depois de acostumada, Bartolomeia preferia dizer sim, todo dia sim, toda noite sim, qualquer hora era hora, pro povo de casa, pros amigados, pro reitor, diretor, coordenador, zelador dos trabalhos xis, ipisilom e zê, porque ela era muito produtiva e tinha diplomas de vários cursos, de todas as experiências possíveis e imagináveis, até pelo sesque, senaque e sesi, que contavam muitas linhas no seu currículo látis, o qual ela já atualizava logo na madrugada em que recebia o certificado, depois dava um sorriso assim meio de lado, ufa, agora vamos para o próximo.
Bartolomeia carregava no rosto um sorriso amarelo que a mãe discutia ser de excesso de café, pois que a moça deveria fazer um branqueamento no dentista, pagar em três vezes sem juros no cartão, mas ela achava isso uma perda de tempo e dinheiro, igual essas falações de que tinha de dormir oito horas por dia, não fazia sentido nenhum quando poderia dormir apenas três ou quatro e se sentir bem e se sentir ótima, e também diziam que tinha de fazer exercício físico pelo menos três vezes na semana, mas ela também achava perda de tempo e dinheiro, novamente não fazendo sentido nenhum, visto que já se sentia bem e se sentia ótima, tinha uma tendência natural à magreza, coisa de genética, tanto por parte de dona Flor, tão apalitada que dela se via o formato das clavículas por cima da blusa, quanto por parte do sujeito que lhe doou o espermatozoide para que pudesse vir ao mundo, contando os vizinhos que este era tão alto e esquelético que seu codinome era vara-pau.
Então os anos se passaram e Bartolomeia foi eleita várias vezes a melhor trabalhadora do ano, ganhou medalhas, dois beijinhos, conheceu o chefe quase-nunca-visto do topo do topo do topo da galáxia empresarial, e ainda um incentivo: continua assim, Bartolomeia: precisamos de mais Bartolomeias no mundo: vamos plantar pés de Bartolomeias, e todos aplaudiram e ela também se aplaudia, ficando mais tempo no trabalho mesmo depois de bater o ponto de saída, trato que havia feito com o chefe visível do setor bê, para garantir que não iria requerer horas extras no futuro via processo judicial, que mané troço de processo judicial, Bartolomeia era mulher de palavra, nunca faria isso, então religava o computador e voltava com todo o gás para dar cabo das metas e das metametas, pois gostava de se desafiar e fazer mais umas especializações onlaine sem sair de casa, com um descontinho básico, aquele descontinho que o brasileiro gosta.
Até que um dia, não se gravou a data porque não era feriado, a impressora de Bartolomeia, situada no décimo nono andar do prédio quatorze da rua éfe, danou-se a apresentar uns tais de problemas técnicos, problemas técnicos esses que ela não fazia ideia de como resolver e precisava por demais imprimir um relatório para levar à reunião que aconteceria, sem nenhum atraso, às treze horas, em ponto, todos na sala sentados com suas devidas posturas eretas de pessoas sérias, em ponto, mulheres com camisa de botão e salto alto e homens com paletós e gravatas a combinar, então contam os funcionários presentes e não presentes, haja vista o espalhamento da notícia via uotizápi, que Bartolomeia se iniciou a dar uns petelecos na impressora com problemas técnicos e, não tendo surtido efeito na resolução do caso, passou a agredi-la com tapas e murros e muitos, muitos, muitos xingamentos, ao passo que a impressora com problemas técnicos ficou com mais problemas técnicos ainda, e a moça, acusada de surto, chilique e histeria, foi mandada pra casa, recebendo dias depois um aviso de sua demissão por justa causa e uma nota fiscal referente ao conserto que deveria fazer daquela impressora super mega ultra tecnológica, importada, meide in chaina, devendo, pois, tratar de resolver logo ou, caso contrário, eles se veriam no tribunal e dessa vez não iria ser o chefe quase-nunca-visto do topo do topo do topo da galáxia empresarial quem lhe encontraria, mas sim um advogado recém-formado qualquer, pois a empresa não gastaria a energia do seu jurídico para pequenas causas como aquela, e um advogado recém-formado qualquer acabou de fazer a oabê e postou no feicebuque com a rechitegue vamos fazer justiça, mesmo que só seja contratado para fazer audiência por vinte reais, é pegar ou largar, se tá achando pouco, tem quem queira, e os amigos dele terão dito pra aceitar porque é assim mesmo, início de carreira sempre tem umas humilhaçõezinhas, é normal, e Bartolomeia poderia ter dito que em qualquer momento da carreira ocorriam humilhaçõezinhas, mas Bartolomeia era simpática, exemplar, a melhor do ano e preferia dizer sim.
Envergonhada, decidiu que deveria se desculpar por aquele incidente da impressora com problemas técnicos, não sabia onde estava com a cabeça, pegou espírito, valei-me, o psiquiatra disse que era estresse e ela deu uma gargalhada na cara dele lhe alcançando um cuspe nos pelos da barba, saiu da consulta e foi direto na empresa, dirigindo-se à sala do chefe, sob os cochichos e olhares curiosos dos colegas, ex-chefe, ele disse, e Bartolomeia se pôs a chorar pedindo perdão, muitos perdões, por favor, e foi quando avistou pela parede de vidro a sua cadeira, a sua mesa, o seu computador, tudo que era seu sendo utilizado por uma outra mulher de óculos, provavelmente as unhas feitas e a maquiagem impecável, e sentiu se alastrar por suas vértebras um aperto tão desafortunado que a fazia ter vontade de tossir pra dentro, não conseguindo lembrar como fazia pra respirar, tendo o que se chamou de avecê que a levou à morte repentina, contando as testemunhas que a última palavra gritada por Bartolomeia foi um exausto não.
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Inocência
O galo mal se espreguiçava e dona Dulce já tinha me derrubado da cama para colher as hortaliças do almoço. Dizia que eu era moça mole, que devia ser mais prendada nas coisas da cozinha, que não debulhava direito os grãos das espigas de milho, que salgava a sopa, que deixava o feijão insosso, o bolo solado, as batatas queimadas. Precisava ser a melhor. Não podia perder nem par ou ímpar. Naquelas bandas, não era fácil arrumar marido. E a danada da velha enchia meu juízo com essa ladainha umas quinhentas vezes na semana. Parecia me jogar praga quando insinuava que eu nunca estaria pronta para o matrimônio. Mas a mulher até que tinha um bom coração. Tratava-me como uma filha de sangue. Só era avexada pelos cotovelos, não queria me deixar pra titia.
Do lado de cá, eu nunca havia me inquietado com aquelas baboseiras de casamento até Inácio aparecer com seu bigode gaúcho. Chegou na cidade recitando uns versos rimados e, entre um poema e outro, se atrevia a soltar palavras em italiano e alemão. Já na viola, tocava um sertanejo tradicional, acompanhado pelo chororô da plateia embriagada. Era gracioso demais como ele apertava os dedos nas cordas. As mãos largas, cabeludas no dorso, as unhas roídas, com cutículas duríssimas, como que esculpidas por um artista da Europa. Sonhei várias vezes com aquelas mãos calejadas procurando meus mamilos por cima da blusa e eu, pare com isso, Inácio, não sou dessas pra você se engraçar. Rezei bem uma dúzia de novenas para manter a pureza dos pensamentos.
Inácio também queria uma mulher com quem juntar os trapos. Então, apressei-me a lhe mostrar meus dotes com a costura e o pudim de leite. Ele pouco se importou e foi direto ao ponto: procurava uma mulher bonita para acompanhá-lo nas suas viagens pelo mundo afora. Garantiu-me casa, comida e roupa lavada. Minha única obrigação seria ficar ao seu lado, o sorriso no rosto, o cabelo arrumado, o traje oportuno, à disposição dos seus desejos. Pediu que eu desse uma volta à sua frente e exclamou que casava comigo dentro de um mês se eu arrancasse três quartos da minha testa. Três quartos, ele frisou. Passou a explicar, num palavreado difícil, que minha testa era grande demais para o meu rosto e que eu ficaria perfeita se conseguisse encurtá-la. Sugeriu arcar com todos os custos da cirurgia e me deu um tempo para refletir.
De início, fiquei magoada. Quis virar freira. Mas logo que me encarei no espelho com sobriedade, notei, num disparo de consciência, o quanto era enorme a distância entre a linha das minhas sobrancelhas e a raiz dos meus cabelos. Era visivelmente desproporcional aos meus olhos miúdos e à minha boca de traço fino. Fiquei surpresa como nem eu, tampouco dona Dulce, havíamos atentado para essa questão. O pobre do rapaz estava certo. Se eu queria ser uma esposa que lhe desse orgulho, haveria de tirar uma boa parte daquela testa.
Mas eu não havia escutado nem cochicho sobre hospital desta categoria. Quando me aproximei, uma fila de gente se estendia da porta de entrada, arrodeando o quarteirão. Inácio me explicou que era necessário chegar cedo para pegar uma ficha de atendimento, mas que nós não carecíamos de tamanho aperreio porque ele tinha cacife para passarmos na frente. Achei foi ótimo, pois, se ficar de pé muito tempo num mesmo canto, me dá logo uma fraqueza nos ossos. Então, entramos guiados pelo segurança do prédio e o povo da fila ficou vaiando, gritando xingamento, que absurdo, tem é peixada, não sei o quê. Nem olhei para trás.
Aqui dentro, liguei os pontos: um sistema de remodelamento de alta qualidade, re mo de la men to, desse jeitinho que o doutor falou, parando em cada uma das sílabas, os dentes tão brancos que desconfiei de água sanitária. Um programa exclusivo para mulheres, a oportunidade de dar uma arrumada na aparência, ficar esbelta de fazer cair o queixo de noivo, namorado, candidato à chumbregação. Nem precisa ser casado no papel, essas formalidades da lei. Basta detalhar como prefere, mais bunda, menos barriga, lábio assim, nariz assado, e depois assina um termo de consentimento junto com a dita cuja.
E não há limite para a criatividade. Tem quem saia daqui com escama nas pernas, quem implante um terceiro peito, quem serre as costelas, quem faça aplicação de pelo de gato, garantida a marca siamesa. Os efeitos colaterais podem ser dolorosos, mas o doutor deu a palavra que os clientes ficam cem por cento satisfeitos com o resultado. Eu acho que tive sorte. Mesmo com um monte de opções e fotos do antes e depois dos casos mais bem-sucedidos, Inácio não arredou o pé da sua ideia original e anotou lá no formulário: tirar três quartos da testa, apenas. Cumpriu nosso combinado.
Se me visse deitada nesta maca, aposto como a falecida Dona Dulce reconheceria que de nada serviram todos aqueles anos me obrigando a ser habilidosa para arrumar marido. Consigo até imaginar seu sorriso empolgado de aprovação, apertando a chapa com os dentes para não se descolar do céu da boca. Em poucas horas, eu estarei perfeita, perfeitinha, para pôr uma aliança de ouro na mão esquerda. Inocência Valadares de Oliveira, vou até ganhar sobrenome de gente famosa.
ivy menon
Delícia de ler!!!!
Lechuza gabi
escritora foda ❤️