Dois contos de Tânia Souza
Tânia Souza nasceu em Bela Vista/MS, é professora e escreve poesias, contos, crônicas e histórias de terror. Publicou os livros Desamores e outras Ternurinhas (poesia – Editora Estronho), Estranhas Delicadezas (contos – Editora Estronho) e Perverso Natal (Amazon). Na literatura infantil, escreveu sobre gatinhos pretos, sorte e azar em Um gato no Jardim (Editora Estronho) e o livro Bichinhos da horta (publicação independente), em que joaninhas, pulgões e outras criaturas desvendam os segredos da horta. Participou de antologias diversas, entre elas: Poetrix 20 anos, A mulher e o Livro – uma relação em prosa e verso e uma homenagem poética a mulheres de diferentes épocas, na Antologia Poetrix lançada no III Encontro Nacional do Mulherio das Letras. Os contos “Quietudes” e “De bordados e quimeras” foram publicados em Estranhas Delicadezas em 2017. Nos contos deste livro, o universo do insólito apresenta a essência do feminino e suas metamorfoses. Um olhar poético para a vivência das mulheres, suas lutas e paixões na fronteira entre o fantástico e a realidade, em temas comuns a todos nós.
Acompanhe um pouco mais da autora em https://www.instagram.com/taniasouza.ms
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Quietudes
E se deu que naquela cidadezinha, a moça nasceu.
Quando criança, pé no chão e cabelo despenteado, nem se dava a perceber, mas… tempo passou. E a moça tinha um dom. Ou seria prenda, maldição?
Ela trazia no olhar o silêncio. Vez em quando, ele transbordava por seus cílios, derramava pelo chão tristezas, ternuras, texturas e loucuras; serenata muda, envolvia a tudo.
O silêncio da moça causava descaminhos e, depois que se rompia, sempre havia gente que se espantava, costume que se espanava, caminho que se enviesava e até quem aprendia a se desconhecer.
Por isso, a moça dormia por dias e dias. Para que o silêncio dos seus olhos não engolisse a rua, a vila, a cidade, o mundo. Nem semeasse entre as gentes o descaminho [que penso, era o rumo, era o lume, era o despertar do que, antes esquecido, lembrava-se-de-haver-ser].
Pois, assim não poderia ser. Era preciso encontrar algo para esses casos de silêncio no olhar. Então, o quê?
“Um guardião de silêncios”, disse o avô.
“Um coador de sonhos”, disse a avó.
“Uma caixa de coisinhas de se ocupar”, disse a mãe.
E o pai, preocupado com as línguas do lugar, mandou é me chamar, já dizendo que “o moço que é douto”, desse a solução.
Mas eu não dizia nada. Caso é que o silêncio já me levava, me abraçava e, no aconchego morno do seu olhar, eu moço douto e triste até sorria. A moça nem sabia, mas ensinava alma a cantar. Também eu aprendia a me conhecer.
Um dia, cansada de silêncio-ser, a moça simplesmente se foi. Dizem, ser na vida o remédio que algum coração perdido precisa, mas perdido no alvoroço dos dias, esquece de saber.
É que o silêncio da moça ensinava o perceber-se.
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De bordados e quimeras
Sobre o telhado, um fiapinho de sol caiu tristonho num pedaço do quintal. Vem pra dentro, menina, dizia a mãe. Guarda depressa teus sonhos que a noite é de fome e não tarda a chegar. Mas nem bem o dia findava e era uma outra fome, que a moça saciava. Tempo passou e mais uma vez, noite veio.
Abraçada pela escuridão, ela se foi. O rosto era todo em riso, ternura aquarelando alma. Não pensou na vila que deixava lá trás. Pensava em cílios curvos, olhos de noite e imensidão esperando por ela na beirinha do rio. Mas somente vagalumes guardavam o luar e, também ela, por toda a madrugada esperou. Quando sol nasceu, percebeu, enfim, que aqueles olhos não viriam. Desteceu no caminho as últimas quimeras do amor. Chegou em casa a tempo de coar o café.
Na vila, mais um filho de boto viria.
antonio carlos g.queiroz
Pela minha janela uma homenagem à sensibilidade.
Tânia Souza
ESSA REVISTA É MARAVILHOSA, MUITO GRATA PELO ESPAÇO.