Dois contos de Thiago Costa
Thiago Costa é historiador. Autor de O Brasil pitoresco de J.B. Debret ou Debret, artista-viajante (Multifoco: RJ, 2016), tem contos em antologias literárias publicados pelo país. Vencedor do 1º Prêmio Pixé de Literatura (2019), na categoria Ficção.
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A gula
Moscas. Multidões. Variadas. De espécies distintas, machos e fêmeas, próximas da morte, recém eclodidas, diversas. Amontando-se nos galhos baixos das árvores. Goiabeiras. Mamoeiros. O velho mangueiral. Antigo, assombrado. Lar das moscas. Multidões. Frutos verdes pendem dos galhos das árvores. Mangueiral primordial, misterioso, de muitas idades, de incontáveis frutos. Frutos verdes, de vez, amadurecendo devagar. No tempo. Dentro do tempo. Lento. Lerdo. Um instante de cada vez. Moscardos de grandes olhos verdes, de grandes asas flamejantes, de armaduras de ossos, caminhando nos galhos das árvores, nos frutos que amadurecem. Depositam ovos nas fendas abertas, sulcos abertos nos frutos que pendem, que balançam com o vento. Lento. Lerdo. Legiões postadas nas árvores de frutos verdes. Fim de tarde, princípio de noite, bordas do abismo que ascende ao centro da Terra. O menino corre, escorrega no barranco, de água barrenta, barriga estufada, com fome, fome primitiva, herdada da mãe solteira, acumulada com a fome dos irmãos, pés descalços, estourados, mãos sujas, marcadas com ferro, corre e atira a pedra que flutua na atmosfera, corpo celeste, boia perdida no campo suspenso, de estrelas invisíveis, sem fundo, sem forma, vermelho-alaranjado, marrom, encardido. O fruto verde balança, as folhas balançam, o vento. As moscas abrem as asas, em pares, manada de moscas, legião alada, fruta protegida, de vez, amadurecendo, guardada por falanges de moscardos, de armadura de ossos, que aguardam a invocação da noite. Amontoadas, reunidas, cumuladas. Juntas. Esperam a ordem fundamental, o chamado divino, a melodia gloriosa, pura, pestilenta. Baal Zebul, Baalzebub, Ba‘al adh-dhabâb. Pretejam a mata. Enquanto protegem os frutos verdes proibidos das árvores do pomar ancestral.
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O sonho ou O rio que fluí para dentro de si
Caminhava pelas margens, seguindo a correnteza. Sol quente, calor imenso, núcleos incógnitos, intimidades do misterioso país de Mato Grosso, centro da Terra. Vagueava fazia dias, o corpo baqueado, carregando fomes antigas, saudades. Pés descalços, feridos, enxada no lombo, bagagem nas costas, a cãibra. Parou um instante para respirar. Brisa suave, fraquejando, derruindo, balançando as folhas altas do capim, das árvores baixas do cerrado. Os ipês floridos. Tudo lindo, pensou. Para as bandas de onde viera nada disso existia. Só os ossos no lugar das plantas. Ossos brancos da cor da brancura da seca mais dura. O sangue ralo, a morte lenta, devagar, espreitando. Mato Grosso era terra distinta, pensou. Efemeridades. Só de passagem. Num repente pegou a bateia, enfiou no rio. Jogou as pedras úmidas de volta na água fria. Coçou a cabeça. O velho chapéu de feltro pendeu de lado, penumbrando o rosto preto, os olhos fundos. As marcas da catapora, da miséria, dos vermes da infância. Olhou ao redor. O rio. Extensões de águas escuras correndo para deus-sabe-onde. Para o mar talvez. Para os oceanos sem fundo, sem bordas, tão longe, além dos limites exteriores conhecidos. O grande rio misterioso, de imensidões secretas, de animais medievais, maravilhas inclassificáveis. Teria sido um velho lobo do rio fosse parido dentro das águas doces dos rios imaginários da antiga Abissínia. Rios de águas sagradas, de divindades mitológicas, rios que correm terra adentro pelo distante país de Mato Grosso. Teria sido animal aquático, fluvioso, habitante das águas profundas, negras, antigas de uma antiguidade antiquíssima, de criaturas anciãs, ancestrais, criadas junto com o tempo, anteriores ao tempo, acumulando eras, sobrepondo idades, o velho, o velhíssimo rio. Via o tempo naquelas águas nubladas, turvas, em constante movimento, constante adeus, perpétua despedida. Olhou o céu. Sem nuvem, calor imenso, sol quente. Tirou a camisa molhada, encardida de tanta andança, estirou sobre a relva, largou as tralhas de lado. A barriga roncava, doía. Deitou para fumar, para dormir. Antes de seguir caminho, pegar o trecho que não tinha fim, que se expandia a cada passo, se alargava com a respiração, como o rio, ao largo, fluindo, murmurando, evanescendo, rumor de águas que passam, rumorando, em eterna despedida, eterna partida, eterno à deus. Dormiu.