Dois poemas de Bruno Molinero
Bruno Molinero é jornalista e autor de Alarido, livro que venceu o prêmio Guavira de Literatura. Os poemas desta página fazem parte do seu novo livro, Férias na Disney, previsto para ser publicado ainda neste ano pela editora Patuá. O poema “beto” também faz parte da antologia Tente Entender o que Tento Dizer (ed. Bazar do Tempo).
***
corra
começou ainda criança
foi o único que percebeu
o poodle cair na piscina
as patinhas angustiadas
tentando chegar à borda
e fez o quê?
ficou lá
imóvel
assistindo à língua roxa
ao pulmão encharcado
até o bicho virar âncora
não moveu um dedo
mas veio a vergonha
e gritou para a mãe
todo descabelado
o petit petizinho
morreu afogado
mãe!
como se não soubesse
não tivesse visto os pelos
pesados presos ao ralo
não estivesse ao alcance
a chance de o cachorro
estar vivo ainda hoje
mas preferiu
o medo e a fobia
todo enrugado
de um terror
tão real que
chega a ser molhado
então nem comece agora
depois desses anos todos
a dizer que finalmente vai
tirar a poeira dos ossos
desenrijecer articulações
paradas inertes petrificadas
ainda mais depois
do que aconteceu ontem
:
sabe que todo mundo
percebeu, não sabe?
pois é
seria melhor correr
abandonar a casa
não levar roupas
pasta de dente
sequer uma mala
mas não consegue
né?
vai ficar aí
sentado
e um rio
escorrendo
pelas axilas
*
beto
na única vez que visitei
beto
ele me esperava em uma
cadeira
de praia no centro da sala
segurando
um pedaço do fêmur em pote
de geleia
cheio de álcool, osso e formol
naquele dia poderíamos ter conversado sobre o seu primeiro amor e como os dois mergulhavam em tecos de pó ouvindo cabeça dinossauro dos titãs, sempre as mesmas faixas, que também tocavam no último volume anos depois, nas festas em que beto passou a ir só para espalhar aquela porra, como fizeram comigo, ele gritaria ao se multiplicar em progressões geométricas e carimbar corpos e línguas e peles flácidas que se misturavam até de manhã no apartamento de alguém, onde ele acenderia um cigarro na janela, lembrando o dia em que viajou para a praia com a mãe e recusou seu ombro, sentados de frente para o mar, o resultado do exame entre os dois, ela liquefeita, ele sem derramar uma lágrima, como se tivesse o corpo formado por bilhões de grãos de areia, secos, incapazes de encharcar ou de aceitar um simples abraço, nem mesmo no dia em que foi internado pela primeira vez ou quando acordou com uma mulher toda de branco passando óleo de amêndoas em seus pés, pensei que fosse um anjo, comentaria, mas logo iria se dar conta de que era a enfermeira, a mesma que trouxe a notícia: você está tomando comprimidos novos e, se tudo der certo, logo vai embora, como de fato aconteceu, e beto voltou a ocupar o quarto na casa dos pais, uma volta às origens e também o início dos efeitos colaterais, do câncer nos ossos da perna, motivo pelo qual perdi a cabeça do fêmur, esta mesma, dentro do potinho há vinte anos, um troféu da sobrevivência e da teimosia, não é qualquer coisa que me derruba, ele diria para mim sentado na cadeira de praia, o clichê da faca entre os dentes, vestindo a capa de herói que gostamos de ver em reportagens na tv, transpirando e babando superação e força de vontade, mas
não
naquele dia beto comentou apenas que
pessoas
são como ossos arrancados da carne
:
pontiagudas ásperas poligonares por
fora
mas moles e porosas se cortadas ao
meio