Dois poemas de Daniel Francoy
Daniel Francoy, 1979, Ribeirão Preto. Publicou os livros “Identidade” (2016, Editora Urutau), ganhador de um Prêmio Jabuti na categoria poesia; “A Invenção dos Subúrbios” (2018, Edições Jabuticaba), finalista do Prêmio Jabuti na categoria crônicas; “O Ganges Represado” (2019, Editora Urutau). O seu próximo livro, “O Velho Que Não Sente Frio e Outras Histórias”, encontra-se em pré-venda e sai em julho pelas Edições Jabuticaba.
Os dois poemas abaixo são inéditos em livro.
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Este jardim foi construído
Este jardim foi construído para que a morte pareça benevolente
e não seja mais do que alguns botões secos de rosas
ainda presos aos ramos ou um punhado de pétalas secas
ao redor das raízes – um idílico cenário para que nele
vivêssemos jovens e não tivéssemos terror maior
do que os animais que desconhecem a palavra morte
e foi construído tendo como alicerce um princípio fundamental
para a tranquilidade de nossa agonia: o princípio da distração,
mas agora há um espelho diante do jardim
e ninguém consegue ser distraído de um espelho.
No começo, a atenção sobre cada detalhe do jardim refletido
causa certo encantamento: a beleza da louça do chá da tarde,
a placidez no semblante das estátuas, a ascensão tortuosa
e dolorosa das flores que buscam o céu com um sentimento
de profunda irmandade, a clareira de grama gasta e batida
no local em que dançamos, certos efeitos de claridade
nas horas em que sol parece evocar a pureza da água,
nós mesmos sentados – deuses que riem.
É preciso algum tempo – mas não tempo maior
do que o percurso de uma tarde – para que a imagem refletida
comece a causar certo incômodo. Então são moscas
que pousam sobre o resto de comida nos pratos
e voam em torno de nossas cabeças? E este bolor
no coração das estátuas não é incompatível
com o clima de sol perpétuo? Há também galhos
quebrados, com trapos sujos de sangue presos
aos espinhos, como que a delimitar o local
onde ocorreu uma cena de violência pouco comentada
durante o sarau. E sob o chão da clareira
não há sinais da presença de um formigueiro
e isso não explica por que nunca dançamos descalços
e por que enterramos os mortos em caixões?
*
Para pichar nos muros da cidade sitiada
Agora não há mais nada entre nós e o fim do mundo.
Toda quarentena é falha.
Eu tenho medo do ar que você respira.
A contagem dos mortos é sempre imprecisa.
Agora vivemos a vida adiada.
Há algo mais do que pássaros e ratos aqui.
Não confie no lucro anunciado.
Há homens com rifles nas esquinas.
Tudo o que conheci está sepultado.
Você ainda acredita que há dias sem mortos?