Dois poemas de Estela Rosa
Estela Rosa é poeta, caipira e tradutora, nascida em Miguel Pereira, região serrana do Rio de Janeiro. Curadora da iniciativa Mulheres que escrevem, é mestranda em Ciências da Literatura e integrando a coordenação do Laboratório de Teorias e Práticas Feministas do PACC-UFRJ. Publicou Um rojão atado à memória (finalista do Prêmio Rio de Literatura 2018) e Miguel, ambos pela Editora 7 Letras. Atualmente vive na cidade do Rio de Janeiro.
Os dois poemas abaixo integram o livro ainda inédito Cine Studio 33.
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No deserto, um cavalo e seu homem sem nome
nas aulas de artes a gente aprendia uma quantidade grande de coisas aleatórias que iam desde esculturas indígenas até novas técnicas dominadas pelos artistas contemporâneos de cinquenta anos atrás
em uma cidade de interior as coisas chegam com um atraso a foto do Cine Studio 33 é de 2002 mas parece, sinceramente, ser de 1980, o único fato que atesta a data é o nome do filme em cartaz tudo para ficar com ele que prova ser então o ano de 2002 pós bug do milênio nós sobrevivemos o cinema não
nas aulas de artes a gente aprendia muitas coisas esculturas de cavalo do nordeste do brasil e ao mesmo tempo nomes estranhos como cubismo urucum e praxinoscópio*
chegando ao praxinoscópio que descubro o nome porque sobrevivemos enfim ao bug do milênio o cinema da minha cidade não apesar do praxinoscópio ele não sobreviveu. um objeto ferramenta brincadeira pesquisa o praxinoscópio é um aparelho que projeta em uma tela imagens desenhadas sobre fitas transparentes e em uma aula de artes um praxinoscópio na tela da TV de tubo uau as crianças pensavam o cavalo corria eram mais ou menos 15 imagens segundo a wikipedia e assim um cavalo corria corria com seu jóquei em cima corria corria e a professora tentando fazer um praxinoscópio com a turma um almanaque com tiras de cavalos montados por seus jóqueis correndo correndo um milagre a movimentação a animação assim chegamos inclusive a disney a dumbo a todos os filmes que também chegavam atrasados como a queda lenta de mufasa
o objeto rodando o cavalo o jóquei o galope o movimento subindo e descendo o cavalo o jóquei subindo e descendo e ali poderia estar meu pai que um dia foi convidado para ser jóquei no jóquei club da gávea sua estatura seus pés pequenos calçam 35 ele poderia montar um cavalo milionário que valeria mais do que seu rim esquerdo mais do que suas filhas ele poderia sentar sobre a sela e correr naquele cavalo milionário e sua fortuna incalculável enquanto meu pai estaria lá sentado sobre o cavalo as apostas os preços altíssimos mas ele teve medo
ou ele não acreditou quem sabe isso não fosse uma espécie de golpe como fazem com meninas jovens a proposta de serem ricas milionárias modelos internacionais talvez meu pai tenha tido medo da proposta como teria medo de acreditar até mesmo em si mesmo ele era correspondente bancário andava com milhares milhões de cruzeiros descendo e subindo a serra ele não tinha medo de ter tanto dinheiro consigo mesmo mas tinha sincero medo de ser rico de ser uma aposta de ser um fracasso?
qual seria o nome do cavalo do meu pai?
Fazze
Don Miloca
Soleil Rouge
Outro Thunder
Lookforthestars
Imortal Glory
Punta Cana
Humor Distorcido
Jardim Olímpico
Indujo Amor
Gogo Boy
Coração de Ouro
Elemento Fatal
não sei, mas o praxinoscópio funcionou até cinco anos após a invenção do cinema. eu não me lembrava seu nome. seria assim com meu pai jóquei seu nome esquecido e ele girando montado em um cavalo com nome, meu pai, um eterno azarão, ele e aquele cavalo subindo e descendo agora aqui nesse meu invento cinematográfico
*esse nome foi pesquisado na wikipedia em 29/08/2018 às 13h08 horário de brasília
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Cine Studio 33
uma vez li um texto chamado os seis minutos mais belos da história do cinema, contava rápido ali a história do cinema e suas imaginações, um dom quixote pequeno, um verdadeiro moleque, sua dulcineia sentada comendo delicados coloridos (sempre evitando os azuis), sei que de repente, dom quixote se ergue de pé, desembainha a espada, se precipita contra o telão e os seus golpes começam a cortar o tecido o corte negro aberto pela espada de dom quixote se alarga cada vez mais e me vejo sentada na primeira fileira do cine studio 33 com meus poucos metro e dez de altura sofrendo pescoço pro alto por ser tão pequena sentada ali no cine studio 33 assistindo desde guerra dos canudos até street fighter voando pipoca a turma inteira a terceira série da escola pública que gritava e berrava (provavelmente tinha um ou dois dons quixotes sentados perto). todas as crianças eufóricas com o rasgo na realidade.
sei que quando li esse texto, esses seis minutos mais belos da história do cinema, só conseguia pensar no pequeno palco onde ficava a tela do cinema cine studio 33 quase de frente para a antiga casa da minha amiga de infância onde tantas vezes conversamos sobre dom quixote e sancho pança, garotos que atravessaram a tela do nosso pequeno cinema. mas o cine studio 33, agora abandonado, só passa na tela algumas recordações. e o que fazer, meu deus, se foi sentadinha lá tudo tão imenso tudo tão pequeno que vi a cena mais triste naquele primeiro telão que viria a ser o telão para sempre, talvez sim aqueles seriam os seis minutos mais tristes da história do cinema:
mufasa despencando do alto do desfiladeiro o chão coberto pela poeira da pata dos gnus em fuga desesperada aquele pequeno montinho de terra, simba e a pergunta mais dolorida que crianças poderiam ouvir no auge de seus oito anos “pai?”
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(Fotografia: Papelícula [detalhe])