Dois poemas de Fernando Alves Medeiros
Fernando Alves Medeiros nasceu em São Paulo (SP) em 1988. Tem poesias, ensaios e contos publicados nas revistas Grafias, LíteraLivre e Subversa. Publicou Kitsch (ed. do autor, 2015) e Itinerário para Puma Punku lançado recentemente pela editora Urutau.
Todos os poemas são de seu último livro.
***
Sentimental
para Ayodelle Dandara
As músicas que eu vivo a cantar
Tem o sabor igual
Por isso é que se diz
Como ele é sentimental
SENTIMENTAL DEMAIS (1965), de Amorim & Gouveia
I.
Sou sentimental:
eu levo fácil as coisas para o lado pessoal.
E é impossível andar por São Paulo e não se ferir.
A todo o momento sou bombardeado por luzes,
vozes, informações, lanças
oi, bom dia, um momentinho da sua atenção
oi, estou com fome, qualquer trocado
é barato é qualidade
próxima esta-
Jesus te ama
cê já ouviu falar de marketing multinível?
E cansa a todo o momento
ter todas as respostas para todas as perguntas:
eutanásia aborto pena de morte
Deus união homoafetiva Lula prisão perpétua
porte de arma privatização feminicídio
eleições golpe Corinthians.
Quer dizer:
nem tempo há: eu abro a boca, me atravessam,
eu argumento, viram as costas, mudam de assunto:
“O que você acha de Deus e o Diabo na Terra do Sol?”
“Como assim nunca leu Valéry?”
e o ciclo (a chatice) recomeça
looping
ad aeternum.
II.
Noite. O amarelo dos postes aceso. Unhappy hour no bar.
Cadu bebe demais, fala alto e só de si (isso me irrita),
Lana fala do ex (de novo, meu Deus, que saco),
João só de política (que asco)
e eu — tardo de língua — foge-me a resposta,
que bosta,
quero sair daqui.
Nesse encontro chato só trocamos
problemas e miudezas (crescemos),
dilemas e tristezas (envelhecemos — e mal)
e uma coleção de fracassos.
A minha voz nunca é alta o suficiente para ser escutada
(então me calo)
(Marília Mendonça até o talo)
(olho aqueles sorrisos superiores como que de outra mesa do canto do bar, olho a mosca escalando o potinho de sal)
(e saio, sacudindo o pó dos meus tênis).
III.
E saio.
Na rua, onde minha derrota é evidente,
o cansaço é imenso, atinge meus ossos. Meus estoques
de energia social estão no vermelho.
Em casa.
Frente ao espelho, eu tento curar minhas feridas,
saco da estante um bom livro, de saída há na TV um bom filme,
mas é sempre uma canção triste dos anos 1960-70
de orquestra derramada
que me deixa assim, sentimental, mais sentimental,
levando para o lado pessoal
essas suas mensagens espaçadas,
visualizadas, você sempre ocupada,
se afastando cada vez mais dos meus versos,
dos meus versos,
das manhãs de domingo falando sobre o nada,
passeando pelas calçadas,
à sombra das patas-de-vaca, das quaresmeiras,
com você, o sol sobre nossas cabeças,
time goes by so slowly.
(pág. 35-37)
*
Poema de passarinho
e dou de pensar
que os pássaros do jardim
vestem gorro
para cantarinhar de frio;
mas porque não posso ver
os tais pássaros
o inverno entristece ainda mais
SOMOS DE CASA (1999), de Mariana Ianelli
Um pássaro —
assim, vadio,
usado como emblema, feito escudo
ou arma de vingança —
passarinhava tranquilo
no meu quintal.
Meditativo,
bicava as ranhuras do piso,
absorto na tarefa
ignorava-me.
Consigo pegá-lo, pensei,
mas,
antes que vontade se fizesse em ato,
com apenas um esboço de movimento
o pássaro voou rápido.
*
Assim é a felicidade,
disse-me alguém
enquanto, além da cidade, o futuro
se abria inteirinho para mim
como um grande céu azul.
(pág. 59-60)