Dois poemas de Gabriel Nunes
Gabriel Nunes de Azevedo (1993) nasceu na capital paulista, cidade onde sempre viveu. Jornalista de formação pela Faculdade Cásper Líbero, trabalhou como repórter na revista Rolling Stone Brasil e como assessor de imprensa no Sesc São Paulo. É também pesquisador na área de cultura e visualidades, com enfoque em estética e semiótica. Reúne material para o lançamento de um possível livro de poemas.
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o batismo do sino
I.
o caminho sob a chuva
e eu nele
a chuva
que suja
os óculos e
as roupas que me vestem
que escorre lenta
meu pescoço
os postes de alta tensão
minhas mãos
as antenas parabólicas
minhas pernas
as casas vazias
minhas sombras
repousantes
como ruínas
do que nunca foram
e eu no caminho sob a chuva
sob a chuva
escutando
não os meus pés contra
o cimento das calçadas
pêndulos de carne
indo e vindo
molhados de chuva
mas o batismo do sino
que vem de longe
o sino da igreja batista do belém
o ressoar
do bronze colidindo
vindo e indo
II.
o caminho sob a chuva
e eu nele
enchendo os olhos
com as vozes das pessoas
algumas aqui
outras em outro lugar
que deixei passar
não entendo o que dizem
embora veja os lábios
abrirem
fecharem
falam mas não escuto o que dizem
porque aqui
onde tudo o que me acontece
e me acontece para sempre
só sei entender
a voz sem palavras do sino
sua língua sólida de mil vozes
crescendo na contramão do caminho
a primeira voz do mundo
infinita silenciosa
e eu a recebo da mesma maneira com que
recebo a luminescência de uma estrela
qualquer
tocando a distância
os vazios que vieram antes de mim
e da chuva
e do caminho sob a chuva
que já não é mais chuva
mas antes uma luz pálida
a escorrer pelos prédios
pelas paredes das casas
III.
a chuva do caminho eu a recebo
como uma lembrança que não sei entender
assim como não sei entender a matéria que fazem os sinos:
seria a mesma que faz uma estrela
ser uma estrela?
a mesma matéria que dá som às vozes?
ou seriam feitos os sinos de algo sem nome
e impossível porque infinito?
não entendo
não entendo e
não sei o que fazer dessa lembrança
da felicidade difícil
do que não vivi
ouvindo o batismo do sino
da igreja batista do belém
hoje
o batismo do sino não é mais do que um
soluço
no tempo.
*
meridiano
a vida ao meio-dia
impossível :
dói tudo
que é muito real
e a luz que atravessa a janela da sala
opaca
e o som dos carros
da rua
e o som das gentes
de que me lembro
ao meio-dia
a vida impossível :
o pão e as migalhas do pão sobre a mesa
polvilhando a toalha
ao redor
da flor de plástico
no copo de vidro
impossível
a vida ao meio-dia:
o telefone toca desavisado
a torneira goteja
e a mariposa remansa
a parede da cozinha
ao meio-dia
a vida acontece tão longe:
ao meio-dia o coração é um lago
em que o sol reflete um rosto
sem nome
um rosto em que se pode ver todos os ontens
atrás de mim
todos os ontens
que me seguem
como em um cortejo milenar
procissão
carnaval
sei que entre eles
existem distâncias
que não posso calcular
(deveria medi-las em
metros meses horas?)
distâncias que habito
e que penetram o chão dos dias
fazendo crescer sumidouros
vazios tão plenos
onde ouço ecos de infinitos ais
ao meio-dia
o que me resta é colher
essas distâncias todas
e guardá-las
firmes
em meus olhos
para que nunca possa esquecer
a ruína dos sorrisos
que um dia conheci.