Dois poemas e um conto de Jomaka
João Maria Kaisen (@poetajomaka), nasceu em 1991, na cidade de Belo Horizonte. Artista da cena, produtor cultural, poeta e ativista Intersexo Transmasculine. Autor do livro “Generalidades ou Passarinho Loque Esse”, editora Impressões de Minas e integrante dos coletivos Academia TransLiterária e Movimento Autônomo T BH.
***
INTERSEXO
algumas vezes eu disse do buraco
nenhum a mais ou a menos buracos no corpo
eu dizia dos buracos de dentro
sobre aqueles que eu fazia perguntas
sobre os buracos de respostas
escondidas
algumas vezes eu disse do buraco
outras vezes eu caí
buraco fundo
buraco adentro
refém de um silêncio
ou de vários.
*
HÁ CORDAS
corpo de carne
corpo de sangue
porta copos de dentes
ouro e minério perderam-se no horizonte
penhascos abismos montanhas de cordas
cordas que puxam
cordas que descem
cordas que sobem
outras que embolam
viram nó
enforcam e puxam de volta
ave maria cheia de graça
dezoito horas eu ouvi a reza tocar ouvi tambores
senti amores
pulsar
vivo.
*
MAY E RIMIDALVO
– Ah, último domingo eu me senti tão sozinho…
– Mas aconteceu alguma coisa?
May pensava que uma carta poderia ser a solução de tudo. Bem, pelo menos foi isso que eu entendi. Se May pensava nisso mesmo, assim tão literal, ou não, aí já estamos falando de outra história. Eu vou contar pensando que May achava que uma carta poderia ser a solução de tudo.
Rimidalvo, como de costume, não escrevia, tampouco ligava e, quando mandava alguma mensagem, não era lá das melhores mensagens pra se receber no meio do dia. Eu não sei se Rimidalvo sabia, mas de toda forma a sua aparição iria causar alguma angústia, um nojo, um mal estar e também um abandono, uma cicatriz aberta em milhares de cicatrizes que ficaram pelo caminho e que não havia força que o fizesse querer retomar aquilo ali.
Então precisa ter início, meio e fim. Assim, bem colocado, quadrado, desenhadinho e matemático para não haver dúvidas. Um logaritmo me contou que nem sempre é tão exato assim. E eu tô falando logaritmo porque foi a primeira palavra dessas que me veio à cabeça. Será que eu estou enfim enlouquecendo? Quais são as minhas limitações de agora? Eu preciso também definir o medo, o que acontece no dia que ainda nem chegou? É isso mesmo então, veio de alguma forma o vômito.
May sentou-se pra escrever a carta, como quem sabia o que estava fazendo. Uma certeza realmente plena, embora haja o pleonasmo, May não tinha dúvidas de que só bastava sentar-se ali e escrever, a carta…
Belo Horizonte, 12 de agosto de 2021.
Eu quero dizer que já pensei muito sobre o assunto e decidi terminar mesmo por aqui. Não quero manter nenhum tipo de contato, vínculo que alcance o pessoal, ou mesmo qualquer lembrança de afeto ou de dor, eu quero dizer pra você não me procurar mais, Rimidalvo, eu prefiro assim, desse jeitinho mesmo.
May.
Naquele domingo eu fiquei rodando pela casa, sabe? Vieram umas ideias estranhas, umas lembranças inconvenientes, porque eu não quero mais pensar sobre isso, eu já me decidi. Depois, na quarta-feira daquela semana, levei tudinho pra terapia. Ah, mas eu fico rindo demais da minha própria cara! Querendo enganar-me que tá tudo bem, tá tudo bem. Tá bom, viu!
Se alguém chegar até aqui achando que isso aqui é um romance, uma história de amor, pode até ser romance, mas de outro tipo, é melhor já ir-se embora. Nem venham se animar! May e Rimidalvo não são um casal, muito menos se apaixonaram ou são pessoas que sem perceber se envolveram. Não, não. É uma história com laço sanguíneo, coisa muito importante aqui por essas bandas de cá das Minas Gerais. Família da veia, um monte de traumas, um monte de motivos para querer-se longe.
– Fique longe de mim!
– Mas, May…
– Olha só, você já sabe que May não é meu nome, eu já tô até me confundindo quem é mais, quero dizer, quem é May, depois de você se meter na minha história. Para de me revirar, é pra você sumir.
– Você podia entender que pra mim é difícil de entender.
A última resposta de Rimidalvo foi a pura ficção na cabeça. Ele nunca disse aquela frase. Eu agora desconcertado, depois de ouvir de Jô que May não era seu nome, recomeço a história assim:
Jô pensava que uma carta poderia ser a solução de tudo. Bem, pelo menos foi isso o que eu entendi. Jô sentou-se para escrever a carta, como quem sabia o que estava fazendo.
Bom, nesse caso todo aí, muda tudo. Não houve carta, não houve a última resposta, muito menos uma ficção sobre ela. Talvez algum tipo de loucura, alguma tristeza há de ter sobrado dali.
Jô me contou que no último domingo se sentiu sozinho. Foi dia dos pais… E eu perguntei se tinha acontecido alguma coisa.