Dois poemas e um conto de Marianna Marimon
Marianna Marimon, 28, escritora antes de ser jornalista, “arrisco palavras, poemas, sentidos, busco histórias que não me pertencem para escrever aquilo que me toca, sem acreditar em deuses, persigo a utopia de amar acima de todas as dores”. Formada em jornalismo (UFMT) e com pós-graduação em Mídia, Informação e Cultura (USP).
***
sorriu de maneira leve e sagaz, como se no peito ocultasse todos os segredos do mundo.
respirou e o peito arfando o ar poluído, regenerou-se parte do espírito.
os olhos mudos de esperança que delineavam os passos tortos,
da pessoa formada pelos signos da literatura, pelo caráter contaminado por verdades mentirosas, do seu eu, ser, estar, que ia tropeçando entre os livros espalhados ao chão.
o nariz reto e fino, a fala mansa, a respiração calma, os olhos secos.
seu jeito de olhar pelo vão da porta aguçava a curiosidade,
a porta estava sempre meio aberta, com a chave na fechadura.
a casa estava sempre aberta.
sua voz era um soluço em meio aos sons difusos.
o que é você?
quem é você?
perguntou timidamente.
baixou os olhos e escondeu as lágrimas.
não sabia as respostas para perguntas simples.
não podia pensar em certezas.
não havia espaço para dúvidas.
havia espaço para anseios.
esperou e esperou.
o sol nasceu baixo aquele dia.
e a chuva tomou conta da rua,
lavando as pedras, o concreto, e arrastando as folhas secas, como em um dia de outono…
*
seus passos
meus acasos
em nosso compasso
da solidão
à espreita,
a ilusão
tecendo os fios
que nos enlaçam
presos aos olhos
imensidão
em uma íris
o fim de perto
é o início
o recomeço
de uma palavra
ao silêncio.
*
ela contou a sua história repetidas vezes. queria entender o que não fazia sentido, aquilo que não se encaixava, para que assim pudesse encontrar alguma justificativa para o fim. mas, seu esforço foi em vão. nada parecia ser o suficiente para explicar o fim de um relacionamento de décadas. e havia tentado de tudo para esquecer: remédios tarja preta misturados com álcool, soníferos, psicólogos e psiquiatras, mais uma montanha de remédios, para dor de cabeça, dor de cotovelo, dor de coração.
mas, infelizmente, o seu vazio permanecia intacto. impreenchível. e se sentia rasa como um rio que não transborda vida. cogitou até que a morte seria o seu último abraço, o seu último gargalo de emoção.
com os olhos rápidos quis entender por que o fim de um relacionamento beira a imensidão. antes contava com destreza todos os defeitos do marido, sabia enumerá-los um a um, mas agora, que tudo havia ido embora, não sabia dizer o que a fez infeliz durante tantos anos.
emudeceu. o não saber era a pior arma que dispunha, e a única. não sabia dizer, não sabia chorar, talvez, não soubesse mais nem o que era sentir.
despudorada. sempre o fora. só que agora, todo este vazio a fazia se sentir torpe, sem razão, sem motivo, sem sentido. era um fantoche em suas mãos. e o porquê? não encontraria nunca. era mais uma refém dos sentimentos alheios, das imposições alheias.
mais uma caixa de remédio para mais uma dose de desespero. permanecia inquieta em seu pedestal. não podia devorar a bula dos medicamentos, devorava a overdose. era o que buscava: a morte.
mas, então, como um raio que caiu sobre a sua cabeça pode enxergar a sua própria miséria: o não saber. lembrou que ao se casar, ‘não sabia’ se ele realmente era quem amaria para o resto da vida, ‘não sabia’ se queria ter filhos ou buscar uma carreira de sucesso, ‘não sabia’ se o amor bastaria, ‘não sabia’ nem quem era.
e como um passe de mágica, soube então. soube que o vazio a lhe dilacerar a alma, sempre esteve ali, independente do fim do casamento, independente dos filhos que não tiveram, independente da vida que prometeram um ao outro, mas que não puderam cumprir.
seus sonhos viraram névoa na imensidão da sua própria memória. e ao ver os sonhos se dissiparem se sentiu leve, absoluta, e novamente, solitária, vazia. aquele não era o fim que queria, que tanto buscara, não era o fim. o fim do não saber sem saber o que se é, o fim do não saber, só ela sabia, e quis, e soube, que assim seria, e em um grito abafado, rendeu-se a mais uma dose do seu próprio desespero, e o bebeu por completo, como se fosse através do veneno, que encontraria a sua alma perdida.