Dois poemas e um vídeo-poema de Luciany Aparecida
Luciany Aparecida é escritora, professora de literatura. Doutora em letras com pesquisas nas áreas de literaturas contemporâneas de língua portuguesa. Seus atuais estudos pensam a literatura na interface: nação, história, identidades e performance. Escreve a partir da criação de assinaturas estéticas. Com a assinatura Ruth Ducaso publicou: Florim (paralelo13S, 2020), Contos ordinários de melancolia (paralelo13S, 2019).
“um homem que grita” é um poema inédito; “memória” é um poema inédito que foi escrito a partir de convite da FELICA/2021 e um vídeo-leitura desse poema foi publicado no instagram da editora Caramurê; e “o amor em movimento” é um poema inédito e o um vídeo-poema está disponível no instagram da escritora.
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um homem que grita
sou estrangeira no país que vivo
nesse lugar
mulheres não fazem parte da nação
nesse lugar
há um homem que grita
ele é homem e grita
ele grita por seu homemito
seu homemito precisa de proteção
o homem grita assim:
(voz censurada)
assim:
(luto censurado)
no país do homemito está censurado falar dos seus gritos
no país do homemito é proibido o luto
é da altura que partem todas as defesas ao homemito
ao chão sentinelas zumbis plantam a morte
no país do homemito a morte nasce secular
arranquei um desses frutos tão antigos
e decepei um corte anelar do seu meio e (re)plantei
cultivo essa coisa na casa que habito
estou presa com ela
não durmo
vigiando seu nascimento
vermes brotam dessa muda
e eu um a um
os mato
e espero
porque sei
que de toda terra
um dia
nascerá um sonho
*
memória
a memória começa na palavra
nos arranjos de minha língua
falo Kandjimbo
e meu desacerto de pronúncia
é geografia de tempo
essa noite sonhei Kandjimbo
falei sem tradução
no sonho me perguntavam e eu respondia
mas era como se eu não ouvisse aquela minha voz
eu dizia no tempo
e nada eu parecia ouvir
nem o eco me sonova
nem o eco
eu fazia silêncio dentro do meu falatório
Kandjimbo
aquele silêncio largo
e àquela imensidão maior de língua
que não parava de memorar palavra
silêncio
o paradeiro tão grande
eu ali dentro
meu coração começou a querer suspirar trégua
meu silêncio começou a caminhar até meus olhos
e daquela altura eu avistei nossas antepassadas
elas dançavam juntas
elas pegavam estrada
elas chegavam e
largavam-se
do mundo
acordei
Kandjimbo
a memória começa na palavra
nos arranjos de minha língua
falo Kandjimbo
e meu desacerto de pronúncia
é geografia de tempo
*
o amor em movimento