Dois poemas e um vídeopoema de Patrícia Lino
Patrícia Lino (1990) é poeta, ensaísta e professora universitária. Ensina literaturas e cinema luso-brasileiros na UCLA e publicou, até à data, O Kit de sobrevivência do descobridor português no mundo anticolonial (2020), Não é isto um livro (2020) e Manoel de Barros e a Poesia Cínica (2019). Dirigiu recentemente DAEDALUS 22/1 (BRA 2021), Anticorpo. Uma paródia do império risível (EUA-POR 2019) e Vibrant Hands (EUA-POR 2019). Lançou também o álbum de poesia mixada I Who Cannot Sing (2020). Apresentou, publicou e expôs ainda ensaios, poemas e ilustrações em mais de sete países. A sua investigação centra-se na poesia contemporânea, culturas visual e audiovisual, paródia, anticolonialismo e cinema luso-brasileiro. É membro integrado do UCLA Latin American Institute, colaboradora do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa e co-editora da revista brasileira de poesia e crítica escamandro. http://patricialino.com.
“O grande problema da poesia” é um poema inédito (2021); “Como uma pedra rolando” foi publicado pela Corsário Satã e incluído no volume Dylan 80 (2021); o vídeopoema, Z, é uma apropriação musical do poema homónimo de António Maria Lisboa e faz parte do livro intermedial que estou agora fazendo a partir da desconstrução de dois conceitos caros a Portugal: antologia e saudade. A construção do livro pode ser acompanhada “ao vivo” aqui: http://patricialino.com/saudade.
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O grande problema da poesia
Você certamente sabe por que Hefesto coxeava
leu os lindos e airosos dóricos de Bión de Esmirna
memorizou quantos graus fez a cabeça de Dido
ao mover-se tristonha por entre os espectros, leu
como não, os 34 cantos do Inferno, discutiu uma
e outra vez, o propósito da gargalhada pública
da doutrina cervantina, não passou um ano, um
sem que reabrisse os idílios, recalcando, obstinado
a importância dos clássicos, o que têm de clássico
os clássicos, os gigantes e os génios, os semideuses
e os prémios. Você certamente dedilhou na página
o ritmo seco e galopante do verso futurista, gozando
açulado, tal o bofetão na escuta, a métrica delirante.
Urrrrà! Non più contatti con questa terra immonda!
Declamou expressivamente antigos e modernos, alto
para que escutassem a justeza da sua interpretação
sorvida, como é hábito, na mais estudada análise
escolar do país. E leu, claro, o país, berço de prodígios
tão extraordinários, todos estes campos cheios
de uma História imperial, esplendorosa e soberana.
Esqueceu-se, porém, de questionar o conforto do nome
de entortar-se, corpo anguloso, para entrar distintamente
e de olhos abertos, no mundo todo. Sequer legitimou
as doidas orgias do Palácio de Ítaca, o não tão digno
mito do arado, ou a criatividade da disputa holográfica
de Estesícoro. Tampouco quis saber o que sussurraram
as mulheres, pilares intemporais do engenho, no silêncio
ou contradisse o tempo linear, os bastidores do mérito
a branquitude da escrita, quanto mais a própria escrita
a forma e a vida, tão redonda como variada, tão farta
como um tomate arremessado à órbita dos caretas.
Você certamente não estudou a história dos trejeitos
a ciência do desconhecimento, o difícil canto gestual
que se lê no espaço e na escuridão, com a inteligência
assombrosa e demorada, de quem perde e tropeça.
E este é essencialmente o grande problema da poesia
regrada, enfeite da nação e da narrativa, da raça
simulada e da comitiva, cómoda no ofício, competente
na beleza fácil, alheia à esfera natural, ao corisco
e à cambada milenar que o assopra até ao fogo desmedido.
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Como uma pedra rolando
Foi com as mãos curtas e besuntadas
que agarrámos a juventude. Ariscos
propensos ao tombo, lambíamos
com pressa e língua, o amor e os quadris.
O que julgávamos ser o amor, pisava:
bota imunda, grosseira, tão enorme
surra. Não sabíamos, não era tempo
que o corpo endura e sói reinventar-se
esplêndido, como um animal liberto.
Tampouco imaginávamos que, então
moído, o coração se dilataria como uma praia.
E depois vieram o golpe, um bramido
de sereia, aliciante, brutal, e a febre.
De nada nos valeram as tisanas, sequer
o intelecto a poucos, esparsos metros
da desgraça. A carne chupava-se toda
sem soluçar, até ao tutano. Muito rápido
viramos carcaça, um traste sem forma e
bracejando, numa briga cortante e acesa
com a ruindade, perdemos a mão e a vara.
Quanto pavor da apressada bagunça, da
burla, do irreparável fracasso apontado à garganta.
Foi quando cedemos. A queda pela manhã.
Não sabíamos, não tínhamos como saber
que o amor, rasteiro e simples, aplacava
a fome, que mais tarde o aprenderíamos
como aprendemos o verbo. E a obstinada
triste perna, estremecendo ao tropeçar
não deixou de conduzir este braço que
surgido da tal escuridão, quis acenar
cinicamente ao mundo. Axé, mundo
quantas manhas mais me trarás ainda?
E o mundo soprou até à casa de onde sorríamos.
Foi quando cantámos. A gentil melodia
a abrir-se toda como ondas às palavras
colhendo umas, rechaçando outras, a vida
estirando-se ao sol, comprida, e o corpo
ao redor dela, a pô-la no regaço. Afinal
a alegria, que chega inteira, não esmaga.
O canto, essa violência afetuosa, crescerá
e eu crescerei, dançando só, ao tactear
às escuras a vida no verso designado
e ardente. Noto como caibo e entro, enfim
no fazer e na solidão. E é então que compreendo.
*
Z (2021)
Texto de António Maria Lisboa.
Voz, vídeo e música de Patrícia Lino.
Parte do livro em processo Variações sobre a Saudade, que
pode ser acompanhado aqui: http://patricialino.com/saudade.
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Retrato da poeta feito pelo artista colombiano Andrés Calderón em 2021: