Dois poemas e uma crônica de Catita
Catita: “Mulher, negra, professora, ‘escrivinhadora’, paulistana, filha, tia, amiga, amante… Mais da prosa, com poemas que vingam. Escrevo porque me dói, escrevo porque me sereniza. Dos escrivinhados publicados em 2018, alguns estão em sites e revistas eletrônicas (Diários incendiários, Deriva, Poemas para combater o fascismo); em coletâneas do Mulherio das Letras (Outono literário – Mulherio Europa em verso e prosa; Espantologia poética: Marielle em nossas vozes; 2ª. Coletânea poética; 2ª. Coletânea de prosa); em Eu, curiosa?, volume 7 da Coleção Besouro de literatura infanto-juvenil; e em Cadernos Negros volume 41: poemas afro-brasileiros. Idealizei e mantenho o evento virtual anual ‘À mesa negra’, o banquete literário novembrino. Minhas croniquetas, contitos, fabuletas, poemetos – e outros que não sei nomear – surgem de meu cotidiano e dos sentimentos de meu mundo imaginário, corporificados no blog www.letrascatitas.blogspot.com.”
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Ciclo vicioso
As palavras perturbam na mente, cutucam a língua, querem sair.
Mas as mãos estão ocupadas escrevendo as prioridades da vida prática, enquanto o coração se aperta sem entender o que são prioridades e vida prática.
E o peito sangra, chora por não ter dedos.
E a cervical sente a autocobrança da autopromessa de não mais negligenciar os escrivinhados.
Não consigo engolir nada.
E as palavras perturbam na mente, cutucam a língua, querem sair.
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Choro vicioso
Para uns, desequilíbrio
Para outros, sensibilidade
Para mim, nada de rótulos
Só preciso dizer que chorei hoje.
Chorei quando a chuva caiu
Chorei junto com a chuva
O porquê não me veio
Ou umedeceu meu crespo
Escorreu
Não pude segurar
Há tempos não entendo.
Ou entendo.
Por isso eu choro?
E chorar é ceder?
É ser fraca?
Engolir o choro queima
Estrangula a alma.
Quando o choro finda,
Me sinto mais forte.
Mentira, fico puta.
*
Primeira impressão
Sou prova viva de que, se a primeira impressão fica, ela pode se transformar ao longo do tempo. E ainda bem, porque essa constatação pode aliviar-me da imensa grosseria que imprimo às pessoas no primeiro contato, pessoas essas que – oxalá – permanecem na minha vida, de forma contínua ou não. Vamos aos casos comprobatórios de minha teoria. São três, em ordem aleatória.
Caso 1: Eneida, parceira querida e competentíssima de trabalho, sempre (re)conta aos risos e com certo ar reprovador que, no dia de sua entrevista com a coordenadora de Português do colégio em que estamos até hoje, eu entrei na sala e ela, toda feliz por ver um rosto conhecido, empolgada, disse que me conhecia e eu respondi com um sério, nada empolgado e duro, “da USP”. Não foi por mal, Nê, querida, era minha tensão por resolver as coisas e a falta, naquele momento, de intimidade entre nós. Daí meu distanciamento. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, mesmo não sendo amigas de estar uma na casa da outra ou de sair ou de ligar pra jogar conversa fora. Nosso lugar de amizade é outro e tão lindo quanto outros.
Caso 2: Vinícius, ex-aluno, ex-estagiário, ex-professor de equipe por mim coordenada, atual colega de trabalho e grande amigo-confidente, ama contar especialmente para meus alunos atuais – e também em tom um tanto quanto magoado – o quanto teve medo de mim no primeiro dia de aula dele, adolescente, em que eu exemplificava para que servia o encosto de uma cadeira e comentava sobre esse esquecimento das criaturinhas que se sentavam na fileira da parede, que desprezavam invariavelmente parte tão importante de tal móvel secular. O Vini, coitado, não só era um dos que se sentavam na tal fileira, como também estava desprezando o encosto, e ainda demorou minutos e perceber que eu me dirigia a ele. Não foi por mal, Vini, querido, era (é?) meu jeito às vezes irônico, às vezes sério, mas sempre, ah… pedagógico, de ensinar alguma coisa. Daí minha rudeza. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz de termos um laço tão lindo e verdadeiro, a ponto de, mesmo brigando contigo, rir à beça de você conseguir se perder quando quer fazer a gentileza de me deixar em casa, caminho já feito inúmeras vezes! (Fora as outras peripécias que não posso contar. Ainda!)
Caso 3: Denise. Denise foi o nome que li na lista afixada no mural da FFLCH no início de 1994. Lista de resultado da “declaração de interesse por vaga”. A única vaga que havia sobrado para Letras, após a primeira chamada da Fuvest. Eu era a quarta colocada. Com certeza um dos dois primeiros colocados conseguiria (não lembro mais os nomes, mas eram garotos). Mas no dia marcado para verificar a lista, estava lá o nome da Denise. Denise era a terceira da lista. Naquele dia, voltando para casa, resolvi descer do ônibus em Santana e me matriculei no cursinho. O magistério na escola estadual, querida formação secundarista, não havia me dado base para as exatas e parte de bio. A mensalidade era o salário que eu tinha como professora da educação infantil. O pai serralheiro prometera – e cumprira a duras penas – o dinheirinho que eu precisasse pra condução (e muito café e amendoim para estudar horas e horas a fio, com a outra amiga, dupla inseparável de pretas únicas metidas ali). Não comprei uma agulha naquele ano. E não é força de expressão: eu já costurava e, com muito mais tempo e energia que hoje, fazia minhas roupas. A Tina, ainda boa de saúde, vez por outra me surpreendia com uma fazenda de viscose ou popeline. Foi o ano da URV. Não vou nem explicar isso aqui… (santo Google que te ajude, irmão!). Mas ao fim daquele ano, consegui minha vaga na USP, com pontuação que, diziam alguns professores, poderia ser para o que eu quisesse (eles não entendiam que eu queria Letras, muito menos Português… Ouvi até o desprezível clássico “Que desperdício”…). Não tenho orgulho do meu esforço, conjunto ao de minha família, para que essa conquista se fizesse em minha vida. Chorei antes pelos outros tantos amigos e familiares que nunca nunca nunca tiveram a chance que tive, nem mesmo de sonhar com isso.
Mas voltemos a Denise. Em 1995, por essas ironias do destino, fizemos alguma disciplina juntas e então descobrimos essa nossa história. E, claro, sempre lhe repeti que ela havia sido quem me tirou a vaga. Não foi por mal, Dê, querida, era imaturidade. Daí minha bestice. Só posso insistir no eterno pedido de desculpas. E ficar feliz por, mais de 20 anos depois, você ter me reconhecido num auditório de um importante congresso de nossa área, ter me chamado, trocado telefone, almoçado, abraçado, conversado, assistido à minha apresentação e marcado de não mais nos perdermos (até porque, mais ironias do destino, moramos no mesmo bairro!). Faltou dizer, Dê, que lá nos idos de 90, depois de conhecê-la realmente, sempre admirei sua inteligência. E isso se renovou no nosso mais recente encontro.
A cronista sabe o precedente que abre com tais confissões. E de antemão insiste no eterno pedido de desculpas por todas as suas caras de poucos amigos, coração de pedra, palavras ásperas (sinceras?!) que atirou nos seus primeiros encontros. E fica feliz de você se dar ao trabalho de lembrar e comentar minha falta de polidez, por que isso significa que primeiro você leu essa crônica. Então antes ainda me acompanha na vida física ou virtual para ter chegado a lê-la. Então você é daqueles que permanecem na minha vida. Então a primeira impressão fica, mas se transforma. Ainda bem!