Dois poemas e uma prosa poética de Santo
Matheus Santo, SANTO, é um paranaense de 23 anos que vive em Colombo, cidade da região metropolitana da capital do estado. Típico geminiano e filho de Logun Ede, suas produções se dão em diferentes sentidos: estudante de direito pela UFPR, sua atuação se dá nos campos de intersecção entre o direito penal e os direitos humanos, com foco no povo negro. Na arte, o caráter multifacetado se acentua: pintor-grafiteiro, escritor e poeta amador e, mais recentemente, se aventura também na música através do rap. Em sua escrita, procura investigar o universo subjetivo dentro de cada um, tendo como sujeito determinado os manos e byxas pretas que atravessam sua vida e espelham sua imagem.
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notas para renascer
nota n°00
para renascer eu preciso antes rasgar todos os poemas que escrevi para os homens que me foderam sem aceitar me beijar. e admitir todas as noites que passei em claro até que você admitisse que nunca me quis. mais difícil que enxergar o futuro é não olhar para trás.
nota n°01
ouço Caetano cantar que não se arrepende e no susto percebo que não posso dizer uma palavra sequer. temo que qualquer denúncia dos teus crimes revele todas as fissuras e cicatrizes do meu corpo. das vezes em que disse sim querendo botar fogo em tudo: você, seus troféus, sua mãe. das vezes que você levou tudo o que eu tinha, me deixando como que numa esquina, como que do lado de fora de alguma porta, quase lá. foi das águas que eu vim, onde sereias cantam melodias perfeitas para que esses homens tão tristes possam dormir. e isso você não poderia prever.
nota n°02
no dia em que eu renasci uma estrela amarela brilhava no céu, dançando por entre as nuvens e os planetas distantes demais pra que e pudesse enxergar. acho que nunca soube seu nome, mas hoje já é tarde demais e as letras todas misturadas não formam palavra alguma. eu nunca pequei, nem meus pés jamais estiveram sujos. tua morte nasceu há quinhentos anos, enquanto eu sempre estive aqui: e estarei mesmo depois da queda da última prisão – do corpo e da mente. tenho olhos de ver. mãos de sentir. antes que seja tarde: vai-te daqui, ou eu mesmo te faço sair.
*
tarefas
as coisas todas que eu precisava aprender
eram sobre o inferno
não sobre os céus.
por isso é que meus pés caminhavam na lama
e a cabeça na calunga.
não ter medo do escuro nem da solidão
não desejar nem me desesperar diante da morte.
agradeço às cobras e às borboletas que me ensinam a transmutar
de casca em casca de pele em pele
eu me torno eu:
ancestral, fu7uri5t4.
tenho cem anos para aprender o movimento
e apenas cinco segundos para executá – lo.
não é sobre a falta de defeitos que se estabelece a perfeição
mas sobre como conduzir os efeitos deles para criar um novo chão.
é o que me explica
é o que me convém.
*
Vou expandir meu coração, reforçar as paredes que o dão forma e abrir infinitamente as veias que levam até ele: assim terei espaço para abrigar todos aqueles que dormem sobre o chão frio dessa cidade fria tendo as nuvens cinzas como teto e a humilhação como único cobertor. Vou estender minhas mãos, esticando todos os dedos ao máximo, e vou deixar que saltem todas as linhas que enfeitam suas palmas: dessa forma darei caminhos a todas as mães que tiveram seus filhos exterminados pela política de segurança do Estado e agora vivem como que sem chão. Os dedos reservarei àquelas que foram abandonadas por seus companheiros e precisam lidar sozinhas com o peso de uma nova vida; pois acredito que assim terão mais facilidade em se livrar da solidão.
Vou fortalecer meus ombros e revesti-los com aço, depois vou cobri-los com a mais pura lã e o mais fino algodão, para que sentadas sobre eles as crianças que hoje vivem descalças e com armas nas mãos possam enxergar mais longe, muito mais longe, do que seus pais um dia enxergaram. Os meus pés guardo para os detentos e as encarceradas do sistema penal que morrem dentro de minúsculas celas, vítimas de doenças já erradicadas no resto do país: para que corram livremente e o mais rápido possível, sentindo a brisa bater em seu rosto e o sol aquecer sua pele durante o dia todo, e não mais por apenas 30 minutos. Da minha boca farei morada a todas as pessoas trans, travestis e transmasculinos, para que possam pronunciar firmes e calm@s seus verdadeiros nomes. Dos meus dentes quero que façam espadas brancas, para que se vinguem bravamente de todos aqueles que insistirem em tentar colonizá-l@s.
Meus pulmões destino aos povos originários desse solo feito maldito, porque lá guardei os ares e verbos puros de Abya Yala. Nos alvéolos escondi uma semente crioula de cada espécie vegetal extinguida pela civilização, porque sei que só eles poderão ativar suas propriedades. As minhas costas entrego aos adictos, bêbados e drogados, para que lancem sobre mim o peso da sobriedade quando já não lhes convier suportá-la. Eu aguento. Ou aguentarei.
Meus punhos faço questão de deixar aos meus inimigos, para que nunca se esqueçam de quem os derrubou. À minha família e aos meus amigos – a quem tenho o orgulho de também chamar de irmãos e irmãs – guardarei especificamente meu sorriso, para que saibam serem eles a vírgula em meu sofrimento, o intervalo em minha dor. E eu, que honrosamente distribuo cada pequena parte do meu corpo, habitarei toda a humanidade e toda a natureza, diluído em toda forma de vida. Que meu desejo redirecione os destinos destes nobres desgraçados enchendo de alegria os seus peitos e de fé os seus passo. Transformarei em verdade o que você viu a última vez que sonhou: nunca mais se sentir sozinho. E tudo isso eu farei, apenas para viver coletivamente.