Dossiê: “Tenho medo de perder este silêncio: cinco vozes femininas”
Dossiê: “Tenho medo de perder este silêncio: cinco vozes femininas”
A exposição, em cartaz* na Casa das Artes (Galeria Ruy Meira [Belém/PA]), tem curadoria de Márcio Lins e apresenta cinco ambientes criados pelas escritoras Galvanda Galvão, Izabela Leal, Josette Lassance, Luciana Brandão Carreira e Mayara La-Rocque, que usam instalações artísticas para abordar o tema do silêncio.
*A exposição foi prorrogada e ficará aberta até o dia 14/06.
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APRESENTAÇÃO por FELIPE CRUZ
Em La Chambre (1976), Chantal Akerman filma a si mesma, deitada na própria cama, em seu quarto. A câmera, em movimento pendular, ora enquadra os móveis, as paredes, a janela, os objetos jogados displicentemente, ora enquadra a diretora, que muda de posição a cada nova passagem da lente pelo espaço que ela ocupa naquele cômodo tão íntimo: às vezes encarando a câmera, às vezes mordendo uma maçã, às vezes escondida por trás das próprias mãos. O filme é mudo e, em entrevista, Akerman recorda que perdeu a banda sonora prevista para o curta. Preferiu não recuperar a trilha, acabou achando que o silêncio era mais adequado àquela atmosfera.
As escritoras reunidas na exposição Tenho medo de perder este silêncio: cinco vozes femininas deslocam a experiência da morada para uma Casa das Artes motivadas, talvez, por esta intuição que me atinge: o quarto é também o espaço das mutações. Intuem, quem sabe, que partem desses quadrados cercados por paredes para muitos lugares, levando sempre consigo essa construção íntima e estranha, espécie de ramificação nossa, um galho enraizado de qual aprende-se algumas espécies de suspensão. E, além disso, as escritoras cuidam do silêncio, cuidam de não o perder, de ouvi-lo, de nutri-lo e expressá-lo, pois as palavras de Izabela Leal, Galvanda Galvão, Mayara La Rocque, Luciana Brandão e Josette Lassance entendem, do fundo de seus ecos, a potência do silêncio. Pois a literatura, a poesia, não existe apesar daquilo que não pode ser expresso, mas sim porque existe aquilo que não pode ser expresso. Dessa compressão que estimula uma investigação, uma escuta, uma captura se desdobram as respostas das poetas: que desde esse lugar doméstico e, quem sabe, considerado inofensivo – o quarto – perscrutam o mundo, vasto demais para qualquer linguagem, mas para sempre apreensível apenas pela linguagem.
Maria Gabriela Llansol, a infinita poeta portuguesa, escreve em seus diários que o seu lugar preferido para a criação literária é um quarto, em sua casa, de onde consegue enxergar a rua quando olha para a esquerda e os mistérios da morada quando olha para a direita – na presente exposição, nos deparamos com instalações que trazem a público os lugares dessa tensão para as autoras envolvidas: o espaço doméstico, historicamente imposto às mulheres como o único que a elas é dado habitar, é enviesado e, abandonado o sentido de clausura ou limitação, se torna o ponto de partida, o fósforo que detonará o mundo, ampliando-o em destroços de onde se fará os poemas que cobrirão páginas e mais páginas dos livros dessas cinco vozes femininas.
Daí que tenhamos acesso aos arquivos e objetos pessoais, aos vestígios de momentos de vida (esta coisa tão particular) que as escritoras recolheram e acumularam: fotografias, anotações, datas já quase apagadas nos cadernos da infância, as mães, os amores, os trajetos percorridos e os abandonados, elementos díspares que confluem para esse fenômeno estranhíssimo que ocorre quando alguém senta diante de uma folha em branco e espera por si mesmo, como dizia Wislawa Szymborska.
Tenho medo de perder este silêncio: cinco vozes femininas reivindica, acima de tudo, acredito, o direito à experimentação requerida pela literatura e por qualquer linguagem: experimentar a vida, expô-la em suas fraturas, refazer-se diariamente, fundar continentes inexplorados e dedicar-se ao breu dos seus mistérios.
Felipe Cruz nasceu em Belém/PA e cresceu em Macapá/AP. Autor das reuniões de poemas Acúmulo (Fundação Cultural do Pará, 2016) e Os cegos dormem (Edições 1/4, 2018) e da prosa Você nunca fez nada errado (Monomito, 2019), também atua na área da fotografia, da crítica literária e do audiovisual – e tem a sorte de ser professor de crianças.
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Galvanda Galvão
A MULHER QUE MATOU OS PEIXES (instalação)
(foto de Diogo V. Vasconcelos)
Textos:
ela acendia todos os cigarros
adorava a memória dos dias
a pressa e as caixas
globos de fogo nas mãos, a corrosão
no burburinho do barco ouvia-se toda a família
a mãe o irmão da mãe o pai numa fotografia obscurecida
não se falava ali
ela insistia numa cantilena
não a conheço e a amo
inventava sinais pra abrir labirintos
vozes nos corredores
a indeterminação
a sombra
a repetição – fica
demoro-me numa obra aberta
espero o mar
*
aqui no exílio
os poetas são muitos são os mesmos
a resistência se faz
sob a pedra
marca dágua
língua desenhando território
para todos e para ninguém
falou Zaratustra
o imenso no dia arrastado de noite
contracanto silencioso
uma Tunísia soterrada
estilhaço e cor
o que fazemos de nós
os presságios estendem a guerra
cenas radiografadas
meu pequenino diário
Link para vídeos:
Galvanda Galvão é videoartista (Arredados de 2018 e Cartas(e)videntes de 2017 com Izabela Leal da sibilafilmes.com), colagista, fotógrafa, professora e escritora do livro UMLANCEDEDENTES da edições do escriba & uxi.cão, 2017 e AMENINAANOLIMOC da editora uxi.cão, 2013; doutoranda em Cinema – Poéticas visuais UFPA-PPGARTES e com mestrado em Teoria Literária na UNESP- SJRP-SP e graduação em Ciências Sociais na PUC-SP.
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Izabela Leal
O SILÊNCIO VESTE A CASA COMO UMA PELE
TOCAR A PELE / TROCAR DE PELE
(instalações)
Textos:
No início
isto não é um diário. não vou escrever minhas memórias nem testemunhar a época em que vivemos juntas. não se trata de confissão. seria antes uma performance curvatura do corpo apresentação da voz. pego um caderno rasgo páginas. suspeito de tudo principalmente dela. ouço ruídos vejo vultos escuto passos. há histórias de loucura nas mulheres da minha família trocam de pele feito cobra. não quero tirar conclusões fazer relatório instaurar processo. anoto rasuro jogo fora. corto sem pudor. aprendi com ela. rabisco. não quero dar bandeira levantar suspeitas. conheci vários tipos de gente ela não era catalogável. uma voz estranha sem melodia. às vezes falava devagar outras acelerava engolia sílabas vomitava frases. conheci vários tipos de gente. certa vez encontrei um sujeito que falava na primeira pessoa do plural. dizia ter muitos companheiros e passear com eles por campos imaginados. ela ficou visivelmente interessada. conversamos na casa de uma amiga. era um cara esquisito. estudava com um guru as artes do desaparecimento. por fim matou o próprio mestre e sobre isso escreveu várias cartas algumas notas e um depoimento. não sei dizer se desapareceu.
*
Nowhere land
eu não quero habitar ela disse. o hábito faz o monge a roupa cola na pele. você se agarra ao hábito. pouco importa. a língua cria ruídos fecha passagens trança cordas. poderia ser uma morada casa estância residência. ela insistiu em não habitar tirar carteira. registros. você se apega demais ao personagem que cria. faz coisas sem querer vira escravo assume compromissos. abandonar o personagem não é mole. ele adere. insiste. gruda que nem chiclete. você até esquece os disfarces maquiagem perfumaria. automatiza. parece ficção científica assombração. filme de terror. agora é tarde pensei. ela fazia discurso pregação. exasperava. perdia facilmente a cabeça. eu permanecia tanto ou mais. não queria escapar do erro só pretendia outra forma de errar. ir embora sair por aí jogar a toalha. vagar.
Link para vídeo:
Izabela Leal é poeta e professora de literatura. Como poeta, recebeu o Prêmio Rio de Literatura pelo livro A intrusa (2016). Lançou em 2018, pela edições ¼, a plaquete artesanal Retratos fora de foco para mulheres sob disfarce e tem poemas publicados em revistas e antologias no Brasil, México e Espanha. Atualmente tem produzido várias videoartes que estabelecem uma interface entre cinema e literatura.
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Josette Lassance
O SILÊNCIO QUE NÃO VEMOS (instalação)
Textos:
Tarde no Bolonha
O silêncio
Fecunda um círculo
(Eco na tarde de chuva)
A-flora negra da neblina
Desfaz a água cinza-oliva-Bolonha
Cor do
Ferro
Do parque
Cor da argila moldando
Corpo do verde-instante
Que pausa antes da morte.
*
O silêncio que não vemos
Tomamos nossos cafés por e-mail
matamos nossas saudades por e-mail
os fins justificam os e-mails.
Pássaros secos
o ninho de metal
ovos de acrílico: nascem cucos.
Casas de barro
Em forma de ninho:
Design de passarinho.
Josette Lassance Maya é poeta, cronista, contista e narradora de viagens, formada em História , Artes Visuais e pós graduada em Artes. Como escritora e poeta, obteve menções honrosas, prêmios de edições, com participações no Fórum das Letras de Ouro Preto, Feira do Livro de Porto Alegre, e sete livros publicados, entre eles, Vida De Bruxa (1992), Os Gatos nus passeiam sobre os telhados sujos (1994), Galeria Dos Maus (1999), Os Cinco Felizes (2009), O Prédio (2003), Buen Camino (Relatos De Viagem, 2019), entre outros. Tem participações em revistas, fanzines e antologias (Sintonias e Delicadezas [2019, com Olga Savary e Guiomar de Grammont] é uma delas, entre outras no Brasil e uma na Itália.
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Luciana Brandão Carreira
NOS FIOS DESSE SILÊNCIO / CASACORPO (instalações)
Textos:
a linha e o ninho
Na Era do voo
o começo da linha era o ninho.
Na ponta da agulha, um cinzel
uma outra agulha e um anzol,
feitos para pescar passarinho.
Havia a costura de um peixe em desova
a vida na ponta da lança
o limite na cabeça do arpão
um voto pelo futuro
o instante da morte de uma fêmea ainda livre
no furo de tudo.
Na cova feita pela maré,
um nascedouro escavado no vinco do chão
para a mulher depositar os seus ovos,
comunhão entre a água e a vida
era o que havia,
no tempo da fecundação da palavra pelo silêncio.
Ponto onde o nunca e o sempre ecoam da escrita muda,
criam o óleo que lambe a engrenagem que move o meu mundo
a água que azeita o teu corpo
o vapor que aciona as turbinas da nossa fábrica
o leite que jorra da bica daquela mãe:
na fonte
do osso,
o nome.
Na ponta da agulha,
a linha que borda a minha pele à tua carne,
o teu olhar à minha voz.
Retirado o anzol,
a asa
livre da ave.
*
renda renascença
o silêncio
nossa agulha
enfiada na palavra
Luciana Brandão Carreira é autora dos livros Entre (Verve, 2014), Os tempos da escrita na obra de Clarice Lispector – no litoral entre a literatura e a psicanálise (Cia de Freud, 2014), A letra da Água (Paka-tatu, 2017), Quinze vezes o cravo– A tradução como Ato (Lumme, 2018), Porta-voz (livro premiado na categoria Poesia no Edital de Literatura da Fundação Cultural do Pará, em 2018), Cânticos da Clorofila – o corpo em prece (editora ¼, no prelo) e Medo (Twee editora, no prelo).
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Mayara La-Rocque
OS JARDINS E OS CAMINHOS / ATRAVESSA A TUA VIAGEM (instalações)
(foto de José Neto)
(foto de Camila Thiers)
Textos:
Os jardins e os caminhos
Eu que sou de terra, das que entram por entre e por baixo de outros mundos, não consigo conceber, não me alcança a pele nem a razão: como os caminhos nas suas nuances de encontros e desencontros, curvas e torneios, labirintos entre gentes, proximidades e distâncias, despedidas a cada passo em frente e retornos que nos atravessam, não podem ser sentidos? Os ciclos nos fazem aperceber que a cada estação que chega é outra que se rompe. As estações ainda que certas, nunca são as mesmas, embora já se tenha previsto que o que se cheira são as flores que calejaram no inverno, que do outono o fruto ainda ferve a maturança do sol. Porém, cada sol que nasce e se põe nunca é o mesmo. Como alguém pode dizer que os dias se seguem iguais, se o que se continua é sempre um dia de cada vez, um-dia-após-o-outro? Isso já é um tanto e se estende na eternidade. A eternidade é sentida a cada instante, ao abrir os olhos a cada dia, no fechar dos olhos em-ca-da-noite.
Nas madrugadas é que se constroem os engenhos da memória, os sonhos rompidos que se prosseguem em algum lugar que esquecemos e se relembram de repente num gesto de alguém que conhecemos ao tropeço, quando achávamos que a vida corria demais e não a alcançávamos de jeito nenhum. Daí o sonho vem e sai tomando o peito que mais parece uma estrada longa e sem fim. Quando criança, sempre ouvi dizer que as histórias não tem fim e hoje entendo o porquê; antes eu brincava, hoje, caminho.
Mas tudo, parece, foi construído para que brincássemos eternamente entres os olhos e seus segredos, não os que nos veem à superfície e desviam, mas os que nos miram a fundo para que possamos, em mais um dia, nos revelar. E assim seguimos esculpindo fotografias entre os afetos, mas quase sempre os retratos que se captam são outros, alguns trazem nas imagens uma lente aguda, uma lupa que reflete novas cores, e outros – eu diria, até mesmo, todos – ficam envelhecidos no mistério de quem fomos, quem somos; que nossa história não se conta senão sobre o que nada se tem para levar deste mundo, um mundo de muitas rotas e caminhos, ou nada disso, existe só o caminhar.
Num dia as rosas floresceram, noutro murcharam e não foi por conta do sol demasiadamente pesado e febril em nossas cabeças, nem as luas deixaram de iluminar, pois sim, vieram inúmeras luas e danças enquanto estive ao teu lado. Sei também que nem foi o pó das estrelas que caíram, nem também a chuva custou a tombar do céu naquela tarde vazia com cinzas de um sol queimando, onde sentíamos o vento bater em nossa face, é verdade, eu sei; há muito que as temperaturas andam um tanto alteradas, mas não tem a ver com meteorologia, e sim – há muito me disseram, ou não me recordo bem se foi nos olhos de meu avô que vi – tudo parece ser obra do tempo e dos calendários vindos de outros orbes. Aqueles glóbulos de um azul ancestral me dizem que embora tudo pareça um caos, tudo segue minuciosamente o ponteiro do relógio, e mesmo que, novamente, tudo pareça um grande desencontro, acredite, tudo tem hora marcada, até mesmo aquilo que perdemos, sobretudo o que perdemos; é quando temos que ir que deixamos no cais o nosso melhor conforto, uma brisa presente avisando que um dia, um dia estivemos ali.
Mas então, tu levaste as plantas para outro lugar, e mesmo que eu não cuidasse bem delas, eu amava quando tu as cuidavas; sentir o cheiro da terra exalando pela casa e te ver feliz varando a noite entre estrelas, rosas e jasmins, cavando e pendendo sobre o jardim uma luminária de luz barrenta e córrego de rio, essa era minha maneira de cuidar; quando nas madrugadas eu rompia o céu agradecendo o que nem mesmo eu sabia, o porquê era tão grande que na verdade não havia um porquê, tão imensa é a vida. E eu sabia, eu sei, a vida se fazia naquele jardim.
É por isso, tem um tempo, tenho tentado arrancar alguns vestígios do que um dia acreditei ser o meu corpo, tenho vendido minhas roupas, outras, tenho doado, trocado entre amigas, para me esquecer das estampas das quais, um dia, me vesti. Vai ver que é por isso, hoje, minhas cortinas são claras, quase transparentes, se enxerga até as silhuetas e se pode bem apreender: meu quarto não tem portas e hoje posso chorar para quem quiser ver. Eu, que tanto quis espaço para viver sozinha, descubro terrenos imensos por metro quadrado a desbravar dentro de mim. Eu, que tanto amava e amo o silêncio, aprendi a conviver com o som estridente vindo de fora – embora não, agora sim – tudo bem, confesso, muitas vezes contrariada, mas é certo que, hoje, chego até mesmo a compreender o barulho alheio; que barulho são ruídos que se vão aumentando em nós e que se um dia não gritamos, vociferamos e berramos as falas interrompidas, a garganta cortada, não mais sequer percebemos o silêncio que nos habita.
O silêncio tudo diz, deve ser um desses senhores enigmas que regem a indústria do tempo, um feitor de velharias no qual colecionamos, entre choros e tristezas, as alegrias e os risos. Esse riso me entra pela fresta de sol atravessando as mesmas cortinas claras, as quais, mesmo à noite, deixam entrar no quarto as luzes dos postes das ruas. Pela manhã, quando abro as cortinas sinto que trago um peito aberto de estradas e caminhos; logo ao longe tem uma ponte, o pôr do sol, a margem e, então, posso sorrir.
*
Atravessa a tua viagem
Certa vez minha mãe me disse que na sua juventude ela gostava muito de escrever, que tinha o costume de lapidar seus sentimentos em palavras, transcrever afetos, traduzir lembranças, contornar em traço e em cor, todas as letras, os rascunhos, as escritas rasuradas em papéis amassados. E hoje esses escritos se perderam, alguns deles estão lacrados em caixas velhas de papelão, as que ficam debaixo da cama ou no último quartinho da casa. Hoje, as memórias que, um dia, foram grafadas se tornaram papéis envelhecidos, cheios de mofo e poeira dentro de uma caixa.
Percebi que depois de um tempo nós adquirimos a mesma amarelidão da velhice e das páginas que deixamos para trás. Elas permanecem como páginas de um livro não mais identificável, esquecido ou até mesmo nunca antes lido. Ora, um livro não lido é o mesmo que um livro não escrito, portanto, não existe.
Pergunto-me se é mesmo isso o que acontece dos delírios e densidades da vida, se vamos encardindo a lembrança, empardecendo narrativas, apagando certas insígnias do tempo, e assim vamos deixando de identificar o registro vivo de quem fomos.
Quem fomos? Nossas idas têm voltas tão intensas que por vezes nos perdemos nos caminhos, fincamos em securas e em terras frias. Em algum lugar deixamos o tempo atrás, o ar a força o fôlego, o vento, o intento, o sustento o peito aberto, as soltas mãos no vácuo e o que soa é esquecimento. Ao contrário do que se pensa o esquecimento não são caixas ocas e vazias, mas sim caixas que pesam debaixo da cama, baús repletos de poeira e mofo, escombros por cima de relíquias.
Hoje percorro mais da metade da vida de minha mãe e já me vejo desenterrando velharias que há um tempo coleciono. O engraçado é que eu sempre tive alergia a coisas envelhecidas, sempre me ative em espirros descontrolados diante da poeira, das gavetas mofentas e dos armários abafados. Vai ver que é porque são os lugares para onde mais se vão os acúmulos que precisamos esvaziar. Esvaziar não é não se ter nada em mãos, mas sim moldar por entre as mãos o que se esvai e não mais se retém. O tempo é vazio e nele nos moldamos; evadimo-nos de nós mesmos e o tempo permanece. O que se perde é o que fica e o que fica está sempre em passagem. Percorrer pretéritos é atravessar sem volta a mesma viagem.