Duas crônicas de Ivy Menon
Ivy Menon é poeta, advogada, pós-graduada em Filosofia e Teoria do Direito, Bacharel em Teologia. Nasceu em Cornélio Procópio, no Norte Velho do Paraná. Boia-fria até os 20 anos, Ivy, desde pequena, amava os livros e os bancos da biblioteca. Depois de sair da roça, trabalhou em O Diário do Norte do Paraná, em Maringá, no qual deu início à carreira de jornalista. Atuou em jornais e assessorias de comunicação, tendo sido, inclusive, Chefe da Seção de Impressa do Tribunal Regional do Trabalho, em Cuiabá, e do Cartório da Justiça do Trabalho em Rio Negro, onde se aposentou. Em 4 de dezembro de 2006, venceu o I Concurso Carioca de poesia promovido pela Associação Brasileira Cultural de Apoio à Cidadania (ABRACI), que contou, entre as parcerias, com a Academia Brasileira de Letras (ABL), Como prêmio, teve publicado seu primeiro – e único – livro de poesia, Flores Amarelas. Ocupou a Cadeira nr. 31 da Academia de Letras de Maringá. Em 2018, foi uma das finalistas no Prêmio OFF FLIP, na categoria Poesia.
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Operação salva cotia
Ouvi os gritos das crianças e corri para ver o que estava acontecendo, do outro lado da cerca do quintal. Logo no início do mato. Apavorei-me. Os chinelos de dedos, a dificultar-me a prova. O capim alto. “Por que essas crianças estão do lado de lá?”, questionava-me. Sou avó. Sou mãe. Cuidei dos irmãos mais novos. Trabalhei de babá dos filhos dos outros. Experiente nas artes de molecada que se junta, não visualizei fumaça ou fogo. “Menos mal”, pensei. Eles rodeavam alguma coisa, no chão. Os cinco falando ao mesmo tempo. Gritei mais alto que eles. Essa técnica pode não ser politicamente correta, mas é infalível. Exigi que um apenas me contasse o ocorrido.
O coração aos pulos, à toa. Esse negócio de ter sido mãe, desde muito cedo, perturbou-me. Por certo, tirou-me o equilíbrio. Antes de completar três anos, eu ajudava a mãe a cuidar da minha irmãzinha, recém-nascida. Balançava o berço. Cantava para ela dormir: “tantangue, telelém. Tantangue, telelém”. E o berço ia e vinha, no compasso da minha voz de nenezinha. A mãe precisava cuidar do almoço. O pai plantava hortelã, na roça. As onze, em ponto, ele chegava morto de fome. De arroz com feijão. E de silêncio. Fui ensinada, cedo. Compreendia.
Uma vida toda gasta em não deixar meninos se matarem. Nem quebrarem braços, pernas, clavícula, nariz. Não botarem fogo na casa. Nem pularam no poço. Tampouco no sumidouro do Rio Encantado. Não deixar o filho do patrão comer terra. Colocar comida na boca do menino. Ter vontade de comer a comida, que jamais poderia ser minha. Nem vir-me à boca. Acudi moleques, de tudo quanto é jeito. Existo para cuidar dos outros. Tenho pavores calcificados dentro de mim. Vez ou outra, eles botam os narizes para fora. Eu deveria ter sido do Corpo de Bombeiros, se as letras a mim não tivessem escolhido.
Bem, eu voei, até eles. Cheguei perto. E vi. Uma cotia arfando no chão. Os pelos imensos marrons. Com tonalidades que chegavam ao verde musgo. A menina maior explicou: “vovó, salva esse ‘cotio’, coitadinho. Ele levou a maior coça. Tentou chegar perto da cotia, cheia de filhotinhos!”. “Um ‘cotio’, meu Deus do céu, o que eu faço?”, gritei. Eu carregava uma toalha de banho, nas mãos. Toalha de banho, para mim, serve para apagar fogo. Estancar hemorragia. Afugentar bichos. Pegar peixe grande preso no raso. E, inclusive, enxugar-me depois do banho, além de carregar “cotio” que apanhou da mulher. Ou melhor, apanhou da cotia.
Pensei que o bichinho sairia em desabalada carreira, quando eu o tocasse. Mas, não. Deixou-se entregue. Envolto na minha toalha branquinha. Há que se reconhecer a solenidade dos atos. Aquele era um raríssimo e solene momento. A vida selvagem. Arisca. Intocada. Obrigado a entregar os pontos para o inimigo. Para um ser humano. No caso, eu. Humana. Pensei nas muitas vezes em que me escondi de gente. Quando, com o estilingue, caçava passarinho para o almoço. Quando armava arapuca. E arrancava tatu, pelo rabo, de sua toca. Eu enfrentava qualquer bicho. Mas homem, não. Tinha pavor dos animais da minha espécie. Senti-me compreendida pelo bichinho.
Um misto de agradecimento e ternura pelo “cotio”, no meu colo. Que foi no colo, que o carreguei para os primeiros socorros. Como um bebê, aconchegado no peito. Fiz como de costume: cuidei de mais um filhote. Depositei-o em uma bacia de plástico. A toalha branca, ainda o protegia. As crianças cochichando: “vovó, não deixa ele morrer, por favor”. “Vovó, coitadinho, está sagrando, perto dos olhinhos”. “Vovó, você sabe salvar cotios?” Enquanto eu avaliava o que fazer. A sala de visitas, uma improvisada enfermaria.
Fiz o óbvio. Dei-lhe água, na boca. Pingando da ponta do meu dedo indicador. Ele bebeu duas gotinhas. Continuou quietinho. Aspergi-lhe a fronte. Águas sagradas. Meio que batismo. Rito de iniciação, no meio dos humanos? Nada disso. Na verdade, dei-lhe um enorme susto. Netos berrando. Aos pulos, para não esmagar o selvagenzinho. Maior correria, em volta do sofá. O bicho recuperara-se. E batia a cabeça na porta de vidro. Não tinha saída.
Escondeu-se. Escancarei a porta. A corrente de ar o atingiu. Abrimos caminho. Ele fugiu. Ensandecido. Um tiro, em direção à segurança de apanhar da cotia. Eu fiquei com a toalha e a bacia. E as mãos abandonadas, ainda molhadas pela sede do bichinho. Meus olhos atentos na tela de arame galvanizado. Um medo, imenso, de o cachorro interceptar-lhe o caminho. Mas o ‘cotio’ passou ileso. E embrenhou-se mata afora. Ou adentro, tanto faz.
Na manhã seguinte, cuidava eu de coisas próprias de vovó. Creio que fazia bolinhos de chuva. Ou poemas. Não me recordo direito. De repente, deparei-me com ele, o serzinho. Passeava pela minha sala de visitas. Cheirava todo e qualquer cantinho. E o susto, dessa vez, foi meu. Segurei a respiração. Ele deu mais umas três voltinhas. Mirou a porta aberta. Vazou, feito um míssil. “Passei para retribuir o carinho”, tenho certeza que ouvi a voz do ‘cotio’. A gratidão comoveu-me. Agradeci aos céus, por minha vez. Por pouco não pego no choro. Escolhi rir. Quase a mesma coisa, nesse caso. Nunca mais apareceu, por aqui, o “cotio”.
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Dos pés vermelhos de algodão
A colheita do algodão era trabalho pesado, embora a brancura de nuvem e os fios de seda enganassem. Eu e meus irmãos catávamos algodão. Acho que comecei a sumir no meio dos espinhais da safra, antes dos onze anos, e era a mais velha. Os três menores, que já podiam trabalhar, desdobravam-se, pois tínhamos meta. A cada arroba colhida, mais chance de não faltar comida naquela semana, já que nas entressafras, faltava. E não tínhamos crédito. O pai nem sempre conseguia honrar os compromissos financeiros. Nossa casa não possuía luz elétrica ou água tratada, por isso, aprendemos a tirar água, do poço, desde os sete anos. Lamparina de querosene, até os meus dezessete. Como não tínhamos conforto algum, só o não ter o que comer era fantasma que estava sempre a nos assombrar.
Quando acabava tudo, a mãe, desesperada, tentava acudir os filhos, lavando roupa para fora, enquanto eu e minha irmã fazíamos faxina. Não poucas vezes, ficamos ser receber a diária, já que não era somente o pai que não pagava o que devia. A mãe, então, mandava: “vai, lá, no mercado do Seu Moacir e pede para ele vender um quilo de arroz, fiado. Fala que eu mesma pago, na semana que vem”. E eu ia. Muitos nãos eu recebi. A mãe não desistia, ordenava, segurando o choro, para que um de nós fosse ver “se tinha osso, no açougue, para doar”. Ou “pé de boi, no matadouro”. Ou “uma caneca de feijão, na vizinha”. Bendito tempo de colheita do algodão. Benditas as semanas de despensa garantida.
Para catarmos o algodão, primeiro, tínhamos que amarrar um fardo de estopa na cintura que, cheio, chegava a uns sessenta quilos. Nossas mãos ágeis de crianças bicavam as maçãs abertas do algodoeiro a arrancarem tufos de lã, até sangrarem os dedos, em volta das unhas, mas nem nos importávamos com isso. Jogávamos a neve dentro do fardo e arrastávamos a carga mais uns metros. Quando a distância do carreador ficava grande, voltávamos para pesar o recolhido, para trocar o abarrotado, pelo vazio. Deixávamos uma esteira cavada no chão vermelho, e os rastros dos nossos pés descalços, de meninos, sumiam.
Às vezes, o frio chegava, antes da hora, e o mês de maio se tornava inverno. Trabalhávamos descalços, mesmo quando a geada cobria tudo. As primeiras horas do dia eram dolorosamente geladas, mesmo no almoço, quando comíamos a boia fria. Uma marmita cada, para serem divididas em duas refeições. A água, ao contrário, era servida sempre morna. Não dispúnhamos de banheiros. O algodoal nos protegia. A humilhação das necessidades fisiológicas, não pode ser descrita. Nada sabíamos de nossos Direitos, que dirá dos tais Humanos.
Os escravocratas não têm limites. São poços sem fundo de egoísmo. Por outro lado, a submissão à opressão extrema, desde a meninice, roubou-nos a força de reação. De tanto sermos forçados, perdemos os limites sobre nós mesmos, assim, não nos pertencíamos mais. Tornamo-nos objetos para uso dos fortes, a se formar um círculo vicioso: “Coisa extremamente dura é lutar contra os aguilhões”, registra o Livro Sagrado.
Nos anos de ferro, da ditadura, o trabalho infantil, bem como aqueles em condições análogas à de escravo eram naturais, normais, aceitáveis. “Melhor o pouco que o nada”, diziam-nos, enquanto agradecíamos a Deus. O lado bom – se é isso fosse possível – é que, sendo legal, não necessitavam nos esconder das autoridades, por isso, pudemos ir à escola e a educação nos redimiu. Abriu-nos os olhos. Arrancou-nos as algemas. Estudar fez toda a diferença na minha vida e na vida dos meus irmãos.
Quando ouço notícias sobre trabalho escravo, especialmente o infantil, choro. Não consigo ficar imune a tão grande dor: à tamanha vergonha. Sempre que uma fazenda com trabalho escravo é descoberta, flagrada, desmontada, e os trabalhadores resgatados, alforriados, a liberdade deles também se torna minha. Nossa, da minha família, dos meus amigos que morreram intoxicados pelo BHC. Dos que morreram, porque caíram do caminhão que nos levava para a lavoura, feito animais. Das minhas amigas meninas que foram para as casas de prostituição, em busca de uma vida melhor.
A Justiça que, hoje, se faz, alcança-nos, aqui, quase quarenta anos, depois da nossa redenção. Falo a verdade. Quem luta contra a escravidão sabe. Quem foi escravo sabe mais ainda.