Duas crônicas e dois poemas de Gabriel Morais Medeiros
Gabriel Morais Medeiros (Campinas-SP, 1988) é autor de Andrômaca, quarenta semestres (Patuá, 2016) e de Pornografia em extinção (Patuá, 2019). Pela mesma editora, participou da antologia Casa do Desejo (2018). Tem textos diversos publicados em periódicos virtuais, como Mallarmargens, Literatura&Fechadura, Ruído Manifesto, Revista Visuais e Cabine Cultural. É licenciado em letras, especialista e mestre em artes visuais pela Unicamp. Desde 2007 trabalha como professor em escolas do interior paulista, principalmente no nível de ensino médio. É responsável pela Ofícios Terrestres Edições, criada em 2019.
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Os embuás de Aokigahara
O youtuber tenta ser cômico e adentra a floresta dos suicidas, no Japão, como Gilgámesh atrás de Humbaba. Usa um chapéu que o torna um abutre, um xofrango, uma gralha com cabeça de pano. O youtuber toca no assunto do poder, fala sobre poder e responsabilidade, cita o tio Ben, e tira sarro, com seus jargões, quando encontra um cadáver, numa clareira do matagal, balangando, destroncado.
Essa assombração (o youtuber) é uma espécie de turista sexual em busca não de “fuckmeat”, mas sim de uma necrofilia pelo deboche. Para ele não há bosques sagrados. O youtuber é um fantasma que se faz de bocó, de mocorongo (nazista), com seu gorrinho de moletom, seus crocs de borracha e suas caretas de sapo.
Tendo avistado e filmado o corpo enforcado, postou o seu vídeo-profanação. Brincou, depois, de homem-aranha, com seus seguidores que clicam no sininho.
No entanto, não reparou nas entranhas do arvoredo. Nos rins rosáceos dos cogumelos, nas raízes; nos cascões embranquecidos dos piolhos-de-cobra, acoplados aos troncos; nos bulbos de luz renal amortecendo os ramos e sendeiros sombreados.
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Sófia, Bulgária, março de dezenove
Quem vagabundeia pelas ruas de Sófia logo vê certos fantasmas. As suásticas estão por toda parte, pichadas nos canteiros, nos tapumes largados, nas escadarias subterrâneas que dão para estações imensas e vazias, como tobogãs em Plutão. Ao fundo da linha ferroviária ergue-se, ensolarada, a chaminé nuclear, feito uma besta de circo congelada há muito tempo. É uma avenida vertical, um looping para um céu de ferro branco. Céu que, à noite, espanta os palhaços e faz com que uma cidade melancólica se revele. Nas feiras desativadas a prostituição começa a ter uma insistência de mantra, nos corredores e becos atravancados por caçambas corcundas.
Quando somos abordados, ao argumentarmos que não temos interesse, que estamos só de passagem, obrigado, logo a mímica entra em ação nas mãos calejadas de quem se dirige a nós, com micagens assumindo o lugar das frases cada vez mais baixas. Frases soltas, que se varrem cheias de vapor e vácuo, enquanto os isqueiros fazem brilhar os nós dos dedos: good sex, 50 lev the time, 40 lev the time, one hour, no problema, no problema. Ramerrões como estes vão sumindo atrás de nossa nuca enquanto vamos embora, à luz laranja das vitrines fechadas, das tômbolas & bingos búlgaros, das casas de aposta com seus painéis extraterrestres, com suas tabelas da champions league, de resultados do ufc, da corrida de cachorros. Através de um insulfilm se veem dois tipos que fumam, paralisados, dentro de uma lotérica que é também um café. É domingo. À esquina, três carecas observam um homem caindo de bêbado. Um pouco depois o levantam e lhe oferecem um cigarro. Na verdade, reparo melhor e vejo que lhe pediram um cigarro, o que talvez tenham feito por brincadeira.
Uma cigana come um kebab e limpa a gordura dos dedos num cachecol de palavras-cruzadas. Ela olha para o meu, do Partizan, comprado em Belgrado, entre as carcaças de falsos canhões nazistas, expostas numa fortificação de mentira, numa das tendas de bugiganga, no camelódromo à beira-rio. Ando agora até um viaduto: três adolescentes cospem nos carros que, pouco a pouco, desaparecem abaixo do arco do pontilhão, e somem como se fossem piadas perdendo sangue numa masmorra, troças agressivíssimas, mas já bastante cansadas, já desprovidas de candência e azedume.
Ao longe, uma mulher com uma câmera e com tênis de lã aponta sua lente para umas galerias, para passagens totalmente vazias, ainda que fustigadas por uma canção pós-eletrônica altíssima, um plágio de mc mirella – mas menos hábil e contemporânea – que bomba com algo de sirene de evacuação. A eurodance não existe há muito tempo.
A Terceira Guerra Mundial não vai começar. É a Segunda que voltará eternamente, o poeta já escreveu.
Logo a fotógrafa-fantasma vai embora. Suas plataformas de borracha propulsora dão passos ágeis pelo asfalto amarelo. Olho com ironia para meu tênis esquerdo, na sequência, e lembro que está imundiçado, e já se esburacou depois de tanta perambulada. Meia garrafinha de anis será suficiente para deixar limpíssimas as canaletas da sola, já livres dos caroços de sujeira. Com os buracos, porém, o que fazer? Até a periferia, a volta será longa.
Na verdade, aqui não há descontinuidade entre o centro e a periferia, e não seria surpresa se os intermináveis blocos de apartamento, ao redor, estivessem desocupados, não seria surpresa se cada prédio fosse um silo destelhado, abarrotado de serragem e bolinhas de isopor, com janelas de polímero fracamente iluminadas, mas acesas para sempre.
Insisto na repisada pergunta. Quem sabe que tipo de mensagem estará em segredo nessa meia-luz, que tipos de inscrições se codificam nesse pisca-pisca.
*
Só que uma coisa eu te garanto: a disney nos surpreendeu
[do livro Pornografia em extinção. São Paulo, Patuá, 2019].
Disseram que aquela mendiga
coleta filtros de cigarrilhas, para comprimi-los
entre os vidrinhos e os ponteiros
de uns relógios de pulso;
fui averiguá-lo.
Ela vive nas calhas e câmaras e aquedutos
das muralhas magrelas, e come caracóis;
solícita, atendendo a meu pedido, avaliou com cinco estrelas
o aplicativo com os túneis mapeados
dos metrôs franqueados
à urubupungá.
Mostrei-lhe em meu celular
o vídeo em que um terrorista
caía numa pegadinha
na fila do botijão de gás.
Ela não se lembrava de ivo-holanda.
Todavia, jamais se esquecia da disney,
a terra das ciladas, das vídeo-cassetadas,
e das armações televisivas
(da carteira-capanga guinchada por um ganchinho, no meio da rua,
ao cuspe e à porra no auscultador do orelhão enguiçado);
da falsa entrevista de emprego,
ao encontrão brutal de ombros, derramador de tudo,
na fila do pastel com garapa).
A disney nos surpreendeu, e guardadas todas as questões,
Orlando-Miami, o complexo Orlando-Miami, ainda permanece, para nós, como uma [recordação afetuosa.
*
She’s all that
[do livro Pornografia em extinção. São Paulo, Patuá, 2019].
No filme She’s all that (Ela é demais, direção de r. iscove, Estados Unidos,
1999)
há uma fantasmagoria notável,
bem típica de um mundo pré-onze de setembro:
uma reportagem a respeito
de um ataque a Mogadixo
é contígua a um fato
ufológico
numa revista que a câmera enfoca, logo às primeiras cenas.
Que mundo inexistente, que tempo
abaunilhável,
você pode dizer,
nesse mundo dos anos 1990 (noventa) teríamos sido mais felizes,
teríamos nos afogado em porra com menos maus presságios,
se fôssemos jovens ou adultos, àquele tempo.
Contudo, é precisamente na inocência pressuposta
de vinte anos atrás
que se endurece o núcleo
catapultador da angústia,
e o bueiro, o tórax e a carneira
dalgumas profecias.
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Boda
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garotas de programa de Goiânia
Continue à escrever, você diz coisa bastante interessante e que sabor.